Pular para o conteúdo principal

A MÃO QUE AMASSA A COMIDA


 

 

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Um colchão mole cortado em cubos de tamanho médio. Um lombo de porco igualmente cortado em pedaços do mesmo formato. Toucinho cortado em cubos pequenos. Tomate, pimentão, alho, cebola, pimenta do reino, cominho, colorau e sal. Banha de porco e um punhado de manteiga. Colocar tudo em uma caçarola grande e funda, água com moderação. Cobrir e por no fogão à lenha para cozinhar.

No início da década de 60 do século XX o fogão da minha avó Petrina era de alvenaria e tinha a lenha como combustível. Somente na metade daquele decênio chegaria em sua casa um moderno fogão a gás, adquirido na Sergipe Gás, a loja fundada por Albino Silva da Fonseca que revolucionou a cozinha dos sergipanos.

A cozinha da minha avó era ampla. O penúltimo cômodo da casa. Depois dela, ainda tinha o banheiro, mas para ter acesso a este era necessário sair pela porta da cozinha, chegar ao quintal e ingressar por uma porta lateral que se abria sem comunicação com a casa. O banheiro integrava o corpo da casa, sem se comunicar diretamente com esta, sem que nenhuma porta levasse diretamente da cozinha ao seu interior.

Voltemos à casa. Desde a porta de entrada principal até a cozinha se atravessava um longo corredor. À esquerda dele, quatro portas que davam acesso a uma sala e três quartos de dormir. Na sala, chamada de visitas, um conjunto com sofá e cadeiras e uma mesa torneada sobre a qual descansava um rádio da marca Semp, com válvulas, que sintonizava emissoras em ondas longas, medias e curtas. Era ao redor dele que ouvíamos a revista de variedades que era o programa Calendário, comandado por Santos Mendonça, e nos debulhávamos em lágrimas ouvindo Silva Lima entrevistar presidiários no programa Cada Crime Tem Sua História, ambos transmitidos pela rádio Liberdade.

Na mesma sala, ao lado da mesa do rádio, havia um espaço no qual, imponente, se instalou a TV Philips, quando ela foi comprada e passou a animar as noites chorosas da família em torno dos dramas da Mamãe Dolores e Albertinho Limonta, o neto bastardo do poderoso e arrogante tirano Dom Raphael. Era o melodrama da telenovela O Direito de Nascer, produzida pela TV Tupi e retransmitida em Sergipe pela antena instalada no Morro do Urubu, que captava o sinal da TV Jornal do Comércio, em Recife.

Contíguo a sala de visitas ficava o quarto da Tia Terezinha. Logo após, o da Vovó Petrina e, por fim o meu. Acabava o corredor e tudo se abria para uma grande e confortável sala de jantar, com uma mesa enorme, retangular, em madeira escura e oito cadeiras de uma madeira pesada, com assentos e encostos em couro preto trabalhado com uma decoração de flores gravadas em relevo.

Seguindo o declive natural do terreno, era necessário descer três degraus para chegar a uma pequena copa e em seguida a cozinha. À direita uma janela e uma pia grande.  Ao centro, uma mesa larga. À esquerda uma despensa e ao fundo o imponente fogão a lenha.

Voltemos à receita da Vovó. Quando ela acendia o fogo para cozinhar o frito de boi e porco, também acionava o dispositivo que começava a aquecer o forno ligado ao fogão. Uma hora e meia depois, a carne estava pronta. Bem cozida, molho encorpado no fundo da panela.

Com muito cuidado, dona Petrina retirava cada pedaço de carne da panela e ia arrumando tudo em uma assadeira que em seguida era colocada no forno, já bem quente. Mais 15 minutos ali, ficava crocante por fora e macio e suculento por dentro. Retirado do forno, era tudo colocado de volta à panela, juntando outra vez com o molho e dando uma nova fervura. Hora de servir a mesa.

Toalha colorida era o padrão usado para forrar a mesa das refeições. Era domingo e, como de hábito, aos domingos, feriados e nos dias de festa, sempre toalha branca. Pratos e talheres, eu, a Tia Terezinha e Dona Petrina em volta da mesa. Primeiro, todos deveriam comer a salada. Folhas de alface e tomates cortados regados com uma solução de vinagre, azeite e sal.

Chegavam à mesa salada, feijão, arroz, farinha e uma travessa com aquele mundo de carne de porco e boi, ainda fumegando, muito quente, tudo coberto com molho em abundância. Este era o meu prato preferido na culinária de Dona Petrina. Minha mãe, Dona Ivanda, assumiu a receite e frequentemente também servia este prato, depois que eu voltei a viver na casa dos meus pais.

Demorei muito a descobrir porque tal iguaria me agradava tanto. Somente nos anos 90 do século passado eu consegui me dar conta. Era já professor da Universidade Federal de Sergipe e em 1992 mudei para São Paulo, a fim de fazer o meu doutorado na Pontifícia Universidade Católica.

Inicialmente morei no Butantã. Depois mudei para um apartamento na Alameda Santos. Divorciado, morava sozinho. Frequentes crises de solidão, principalmente aos domingos, na hora do almoço. Depois fui morar em um outro apartamento, na rua Frei Caneca. As crises de solidão continuavam a se manifestar aos domingos, durante a refeição do meio dia.

A memória me mandava de volta à mesa da casa da Vovó Petrina aos domingos. E fazia muito tempo que eu havia frequentado aquela mesa. Morei com a minha avó entre os seis e os 11 anos de idade. Eu não entendia aquelas lembranças insistentes e perturbadoras que voltavam sempre no mesmo dia da semana e no mesmo horário. Durante a semana, as crises de solidão não me perseguiam. Almoçava com os colegas no restaurante da PUC e aos sábados sempre fazia a refeição do meio dia acompanhado do dileto amigo Fernando Casadei.

Um empreendimento acadêmico me ajudou a compreender as crises dominicais. Naquele 1992 eu estava fazendo a leitura da obra completa do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. Comecei pelo Casa Grande & Senzala. A minha consciência recebeu o primeiro alerta, me despertou a curiosidade e o desejo de ler a História da Alimentação no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo. Depois dele, retornei ao saboroso livro O Açúcar, de Gilberto. Em seguida, dele também, Sobrados e Mocambos.

Compreendi as saudades da mesa dominical da Vovó. Na verdade, aquele prato tão celebrado de Dona Petrina tinha um sabor especial e era de tão boas lembranças por ter no afeto o melhor dos seus condimentos. Nos dias em que o frito de boi e porco era servido, os almoços eram longos, muito demorados, como devem ser feitas as refeições.

Rigorosa no modo como o neto deveria segurar corretamente os talheres, no dia do frito Dona Petrina abria uma exceção. Após o consumo da salada, mandava que eu abandonasse garfo e faca. Ela mesma pegava meu prato, colocava arroz, feijão e farinha. Com as mãos mexia tudo e ia formando pequenos bolinhos que arrumava simetricamente, em formato circular, num outro prato e colocava na minha frente.

Prato cheio de bolinhos de feijão e arroz, num terceiro prato ela cortava os cubinhos de carne cobertos com muito molho ao qual acrescentava minúsculos pedaços de pimenta dedo de moça. Me estimulava a comer aquele imperdível menu suculento de bolinhos de feijão e arroz que eu embebia um a um no prato do molho com pequenos pedaços de carne e degustava lentamente em almoços que duravam cerca de duas horas, numa sessão de paz e num ambiente de muito carinho. Outras vezes, ela fazia todo o processo e colocava o bolinho com carne e molho em minha boca. O meu único trabalho era o da mastigação.

Em São Paulo, eu almoçava todos os dias no restaurante da PUC, habitualmente com a minha colega de doutorado, a baiana Lúcia Franca Rocha, à época professora da UnB que depois se transferiu para a UFBA. Nós dois sempre apressados, com os afazeres de leitura, pesquisas e horários de aula. Entre a hora de entrada no restaurante e o momento em que estávamos tomando um cafezinho para retomar as atividades acadêmicas não decorriam sequer 40 minutos.  

Comer com Dona Petrina e a Tia Therezinha era uma sessão de muito amor, muito carinho e troca de afetos. Aos domingos, sozinho, à mesa do apartamento da Alameda Santos ou da Frei Caneca, no décimo primeiro andar ou no sexto, era impossível esquecer a importância da mão que amassa a comida.

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

Comentários

  1. Eita, que deu água na boca!
    Saudades boas....

    ResponderExcluir

  2. Gostei muito de ler A Mão Que Amassa A Comida! Me emocionei bastante, pude recordar fatos vividos durante a minha infância com a minha avó.
    Obrigada professe Jorge.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A MORTE E A MORTE DO MONSENHOR CARVALHO

  Jorge Carvalho do Nascimento     Os humanos costumam fugir da única certeza que a vida nos possibilita: a morte. É ela que efetivamente realiza a lógica da vida. Vivemos para morrer. O problema que se põe para todos nós diz respeito a como morrer. A minha vida, a das pessoas que eu amo, a daqueles que não gostam de mim e dos que eu não aprecio vai acabar. Morreremos. Podemos mitologizar a morte, encontrar uma vida eterna no Hades. Pouco importa se a vida espiritual nos reserva o paraíso ou o inferno. Passaremos pela putrefação da carne ou pelo processo de cremação. O resultado será o mesmo - retornar ao pó. O maior de todos os problemas é o do desembarque. Transformamo-nos em pessoas que interagem menos e gradualmente perdemos a sensibilidade dos afetos. A decadência é dolorosa para os amigos que ficam, do mesmo modo que para os velhos quando são deixados sozinhos. Isolar precocemente os velhos e enfermos é fato recorrente, próprio da fragilidade e das mazelas da socied...

O LEGADO EDUCACIONAL DE DOM LUCIANO JOSÉ CABRAL DUARTE

  Jorge Carvalho do Nascimento     A memória está depositada nas lembranças dos velhos, em registros escritos nas bibliotecas, em computadores, em residências de particulares, em empresas, no espaço urbano, no campo. Sergipe perdeu, no dia 29 de maio de 2018, um dos seus filhos de maior importância, um homem que nos legou valiosos registros de memória que dão sentido à História deste Estado durante a segunda metade do século XX. O Arcebispo Emérito de Aracaju, Dom Luciano José Cabral Duarte, cujo centenário de nascimento celebramos em 2025, foi uma das figuras que mais contribuiu com as práticas educacionais em Sergipe, sob todos os aspectos. Como todos os homens de brilho e com capacidade de liderar, despertou também muitas polêmicas em torno do seu nome. Ao longo de toda a sua vida de sacerdote e intelectual da Educação, Dom Luciano Duarte teve ao seu lado, como guardiã do seu trabalho e, também da sua memória, a expressiva figura da sua irmã, Carmen Dolores Cabral Duar...

A REVOLTA DE 13 DE JULHO, OS SEUS REFLEXOS SOCIAIS E OS MÚLTIPLOS OLHARES DA HISTÓRIA

      José Anderson Nascimento* Jorge Carvalho do Nascimento**                                                                                              Qualquer processo efetivamente vivido comporta distintas leituras pelos que se dispõem a analisar as evidências que se apresentam para explicá-lo. Quando tais processos são prescrutados pelos historiadores, a deusa Clio acolhe distintas versões, desde que construídas a partir de evidências que busquem demonstrar as conclusões às quais chega o observador. Historiadores como...