Jorge
Carvalho do Nascimento
História
é ciência dedicada a estudar aquilo que aconteceu, o que efetivamente foi
vivido pelos humanos. Nunca é demais lembrar que é com os olhos voltados para
as coisas que efetivamente aconteceram que somos capazes de explicar e dar
sentido à vida. O porvir ainda não aconteceu e não sabemos se irá acontecer, posto
que a incerteza da morte nos está posta desde o momento no qual abrimos os
olhos para a vida.
O
que denominamos de presente é um átimo que se torna passado a cada momento
vivido. O entendimento de todas as dimensões da vida, da condição humana, da
economia, dos afetos, das práticas culturais, das relações familiares, da
organização da sociedade, da política, tudo isto é dado pela fantástica
experiência que chamamos de vida.
Tudo
que diz respeito a existência humana foi constituído na luta pela
sobrevivência, na busca por melhores condições de vida, pela segurança de cada
indivíduo ao se proteger das adversidades postas pelo ambiente natural, pela
necessidade de se defender dos riscos apresentados por outros indivíduos que competem
pela apropriação dos recursos que a natureza oferece e pelas riquezas que os
próprios homens criam. A luta de todos contra todos é marca da condição humana.
A
chegada do homem europeu a esta porção de terra que chamamos Brasil foi movida
pela busca de riquezas, de recursos que escasseavam na outra margem do
Atlântico Norte. Do mesmo modo, eles chegaram a outras terras americanas. As
guerras que portugueses, espanhóis franceses, holandeses e outras nações
fizeram entre si e contra os povos originários criaram as condições sob as quais
se organizou o estado brasileiro.
As
disputas de poder sob o Império, as lutas pela libertação dos africanos
escravizados, os embates dos sergipanos contra os baianos buscando a
emancipação política, a guerra brasileira contra o Paraguai e a expansão da
nossa fronteira Oeste, tudo é História. Como é História o golpe de estado
encarnado na figura do Marechal Deodoro que inaugurou o modelo de estado
republicano entre nós.
Do
mesmo modo, é possível ler e interpretar sob distintos vieses fatos como as
revoltas da Primeira República, o golpe liderado por Getúlio Vargas, o Cangaço,
o Estado Novo, o regime da Constituição de 1946 e as diversas revoltas vividas
até 1964. O mesmo pode ser dito do golpe de Estado que se inaugurou naquele
momento e estabeleceu uma ditadura que governou o Brasil durante 20 anos. Tudo
é História.
Mal
acabamos de viver, é já História. É História a Nova República de Tancredo Neves
e José Sarney. É História tudo que aconteceu sob Sarney, Fernando Color, Itamar
Franco, Fernando Henrique, Lula, Dilma, Michel Temer e Bolsonaro. É História a
tentativa de golpe de Estado do 8 de janeiro de 2023 e também os dois primeiros
anos do atual governo Lula III. Tudo pode ser lido, visto, interpretado a
partir dos padrões científicos da História.
Todos
nós brasileiros, sem qualquer exceção, lançamos sobre essa História diferentes
olhares, de acordo com as convicções que possuímos e a partir daí construímos nossas
lembranças. Nossas recordações, legando a matéria prima da memória e do
registro documental que servem ao trabalho dos historiadores constroem a
História.
Historiadores
produzem diferentes teorias, a partir da sua postura diante do mundo, em face
da vida, a partir das suas convicções e dos seus interesses objetivos para
explicar e dar sentido àquilo que efetivamente aconteceu. Isto faz da História uma
ciência singular, sempre a descobrir, a se redescobrir e a produzir novos
sentidos àquilo que já foi visto e estudado.
Por
ser ciência com tal singularidade, aos estudos de História não as adequam buscas
como a de um suposto discurso de neutralidade. Não há neutralidade na História,
assim como não há neutralidade na vida. Sempre tomamos posição. E as posições
são legítimas quando defendidas com honestidade e a partir de evidências
efetivamente demonstradas.
O
Brasil discute atualmente, de modo tenso e emocionado, a questão da tentativa
do golpe de Estado que teve seu ápice no dia 8 de janeiro de 2023. Estudar e
interpretar essa História é um esforço coletivo que vem sendo feito nas universidades
e que não se subordina aos interesses esgrimidos por aqueles que buscaram
subverter o resultado que saiu das urnas nas eleições de 2022.
Recentemente,
lideranças políticas aracajuanas, entusiastas dos líderes golpistas de 2023, se
insurgiram contra uma prova de redação aplicada pela Universidade Federal de
Sergipe. Prova que apanhou os fatos do 8 de janeiro apresentados em um texto
gerador de debate que discute a ressureição do Nazifascismo presente no
discurso de líderes contemporâneos de direita.
Indiscutivelmente
elementos fundantes do discurso do Cabo Adolf Hitler e do General Francisco Franco
podem ser encontrados abundantemente nas ideias de líderes como Donald Trump,
Victor Orban, Benyamin Netanyahu, Javier Milei e do ex-presidente brasileiro
Jair Bolsonaro. É fato. É História.
Eles
possuem o direito de defender as ideias nas quais acreditam. Contudo, é
estranho que eles fiquem indignados quando alguém demonstra que essas mesmas
ideias possuem pertinência e foram esgrimidas no passado por lideranças que
ficaram impopulares na História. É estranho que tentem censurar e proibir esse
tipo de debate, logo agora que se apresentam tanto em nome da liberdade de
expressão.
É
difícil compreender quando instituições de ensino e pesquisa se dobram a esse
tipo de pressão, feita a partir da ótica eleitoral momentânea, olvidando as
regras da História como ciência das coisas singulares. Argumentação que é feita,
normalmente, a partir de uma suposta neutralidade da História, de todo
inexistente.
Neste
ponto do debate vale a pena invocar a posição de Miguel de Unamuno, três vezes Reitor
da Universidade Salamanca. Na reabertura do ano letivo da Universidade, sob o
Franquismo, em outubro de 1936, Unamuno discursou criticando Franco e suas
ideias. “O ódio que não dá lugar a compaixão não pode convencer” – disse Unamuno.
O
general franquista José Millán-Astray, que se encontrava na plateia, gritou: “Viva
a Morte! Morte à Inteligência!” Unamuno retomou o discurso e respondeu: “Este é
um templo da inteligência! E eu sou seu supremo sacerdote! Vocês estão
profanando seu recinto sagrado. (...) E para persuadir necessitais de algo que
não tendes: razão e direito na luta!”
O
escritor, poeta e filósofo Unamuno foi demitido da Reitoria e nunca mais foi
visto em público até morrer no mês de dezembro do mesmo ano de 1936.
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