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MIGUEL DE UNAMUNO E A PROVA DA UFS

                                                            Miguel de Unamuno
 


 

 

Jorge Carvalho do Nascimento

 

 

História é ciência dedicada a estudar aquilo que aconteceu, o que efetivamente foi vivido pelos humanos. Nunca é demais lembrar que é com os olhos voltados para as coisas que efetivamente aconteceram que somos capazes de explicar e dar sentido à vida. O porvir ainda não aconteceu e não sabemos se irá acontecer, posto que a incerteza da morte nos está posta desde o momento no qual abrimos os olhos para a vida.

O que denominamos de presente é um átimo que se torna passado a cada momento vivido. O entendimento de todas as dimensões da vida, da condição humana, da economia, dos afetos, das práticas culturais, das relações familiares, da organização da sociedade, da política, tudo isto é dado pela fantástica experiência que chamamos de vida.

Tudo que diz respeito a existência humana foi constituído na luta pela sobrevivência, na busca por melhores condições de vida, pela segurança de cada indivíduo ao se proteger das adversidades postas pelo ambiente natural, pela necessidade de se defender dos riscos apresentados por outros indivíduos que competem pela apropriação dos recursos que a natureza oferece e pelas riquezas que os próprios homens criam. A luta de todos contra todos é marca da condição humana.

A chegada do homem europeu a esta porção de terra que chamamos Brasil foi movida pela busca de riquezas, de recursos que escasseavam na outra margem do Atlântico Norte. Do mesmo modo, eles chegaram a outras terras americanas. As guerras que portugueses, espanhóis franceses, holandeses e outras nações fizeram entre si e contra os povos originários criaram as condições sob as quais se organizou o estado brasileiro.

As disputas de poder sob o Império, as lutas pela libertação dos africanos escravizados, os embates dos sergipanos contra os baianos buscando a emancipação política, a guerra brasileira contra o Paraguai e a expansão da nossa fronteira Oeste, tudo é História. Como é História o golpe de estado encarnado na figura do Marechal Deodoro que inaugurou o modelo de estado republicano entre nós.

Do mesmo modo, é possível ler e interpretar sob distintos vieses fatos como as revoltas da Primeira República, o golpe liderado por Getúlio Vargas, o Cangaço, o Estado Novo, o regime da Constituição de 1946 e as diversas revoltas vividas até 1964. O mesmo pode ser dito do golpe de Estado que se inaugurou naquele momento e estabeleceu uma ditadura que governou o Brasil durante 20 anos. Tudo é História.

Mal acabamos de viver, é já História. É História a Nova República de Tancredo Neves e José Sarney. É História tudo que aconteceu sob Sarney, Fernando Color, Itamar Franco, Fernando Henrique, Lula, Dilma, Michel Temer e Bolsonaro. É História a tentativa de golpe de Estado do 8 de janeiro de 2023 e também os dois primeiros anos do atual governo Lula III. Tudo pode ser lido, visto, interpretado a partir dos padrões científicos da História.

Todos nós brasileiros, sem qualquer exceção, lançamos sobre essa História diferentes olhares, de acordo com as convicções que possuímos e a partir daí construímos nossas lembranças. Nossas recordações, legando a matéria prima da memória e do registro documental que servem ao trabalho dos historiadores constroem a História.

Historiadores produzem diferentes teorias, a partir da sua postura diante do mundo, em face da vida, a partir das suas convicções e dos seus interesses objetivos para explicar e dar sentido àquilo que efetivamente aconteceu. Isto faz da História uma ciência singular, sempre a descobrir, a se redescobrir e a produzir novos sentidos àquilo que já foi visto e estudado.

Por ser ciência com tal singularidade, aos estudos de História não as adequam buscas como a de um suposto discurso de neutralidade. Não há neutralidade na História, assim como não há neutralidade na vida. Sempre tomamos posição. E as posições são legítimas quando defendidas com honestidade e a partir de evidências efetivamente demonstradas.

O Brasil discute atualmente, de modo tenso e emocionado, a questão da tentativa do golpe de Estado que teve seu ápice no dia 8 de janeiro de 2023. Estudar e interpretar essa História é um esforço coletivo que vem sendo feito nas universidades e que não se subordina aos interesses esgrimidos por aqueles que buscaram subverter o resultado que saiu das urnas nas eleições de 2022.

Recentemente, lideranças políticas aracajuanas, entusiastas dos líderes golpistas de 2023, se insurgiram contra uma prova de redação aplicada pela Universidade Federal de Sergipe. Prova que apanhou os fatos do 8 de janeiro apresentados em um texto gerador de debate que discute a ressureição do Nazifascismo presente no discurso de líderes contemporâneos de direita.

Indiscutivelmente elementos fundantes do discurso do Cabo Adolf Hitler e do General Francisco Franco podem ser encontrados abundantemente nas ideias de líderes como Donald Trump, Victor Orban, Benyamin Netanyahu, Javier Milei e do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro. É fato. É História.

Eles possuem o direito de defender as ideias nas quais acreditam. Contudo, é estranho que eles fiquem indignados quando alguém demonstra que essas mesmas ideias possuem pertinência e foram esgrimidas no passado por lideranças que ficaram impopulares na História. É estranho que tentem censurar e proibir esse tipo de debate, logo agora que se apresentam tanto em nome da liberdade de expressão.

É difícil compreender quando instituições de ensino e pesquisa se dobram a esse tipo de pressão, feita a partir da ótica eleitoral momentânea, olvidando as regras da História como ciência das coisas singulares. Argumentação que é feita, normalmente, a partir de uma suposta neutralidade da História, de todo inexistente.

Neste ponto do debate vale a pena invocar a posição de Miguel de Unamuno, três vezes Reitor da Universidade Salamanca. Na reabertura do ano letivo da Universidade, sob o Franquismo, em outubro de 1936, Unamuno discursou criticando Franco e suas ideias. “O ódio que não dá lugar a compaixão não pode convencer” – disse Unamuno.

O general franquista José Millán-Astray, que se encontrava na plateia, gritou: “Viva a Morte! Morte à Inteligência!” Unamuno retomou o discurso e respondeu: “Este é um templo da inteligência! E eu sou seu supremo sacerdote! Vocês estão profanando seu recinto sagrado. (...) E para persuadir necessitais de algo que não tendes: razão e direito na luta!”

O escritor, poeta e filósofo Unamuno foi demitido da Reitoria e nunca mais foi visto em público até morrer no mês de dezembro do mesmo ano de 1936.


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