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REQUIÉM PARA MARIETA


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Querida amiga Marieta:

Lembro-me com muita clareza do dia em que nos conhecemos. Era o mês de julho de 1985. Eu havia acabado de regressar a Aracaju, depois de três anos cursando Mestrado em Filosofia da Educação na Pontifícia Universidade Católica – PUC de São Paulo. Estávamos vivendo a efervescência de um momento inesquecível da história do Brasil. As primeiras eleições diretas para prefeitos das capitais, depois de 20 anos da ditadura militar que se iniciara em março de 1964.

À época militante do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, me engajei na campanha eleitoral ao lado do então jovem deputado federal Jackson Barreto de Lima, o candidato da esquerda ao cargo de prefeito de Aracaju. Você era militante do Movimento Socialista e também fazia campanha para o mesmo candidato.

O Movimento Socialista era liderado por jovens intelectuais de esquerda como o engenheiro agrônomo Rosalvo Alexandre e pelo médico Antônio Samarone. Você, aos 23 anos de idade, estava desistindo do curso de Odontologia que fazia na Universidade Federal de Sergipe e decidindo migrar para a licenciatura em Pedagogia na mesma instituição, o qual deu suporte a sua bem-sucedida carreira de profissional da Educação.

 Após os comícios noturnos de Jackson costumávamos fazer a resenha do dia em algum dos bares frequentados pelos militantes dos diferentes partidos de esquerda. O bar Scooby-Doo era um desses espaços. Uma casinha pequena, com mesas sobre a calçada, no cruzamento das ruas Arauá e Senador Rolllemberg, defronte da casa na qual vivia o jornalista João Oliva Alves.

Amigo de Rosalvo Alexandre mesmo antes de sair de Aracaju, em 1982, para cursar o mestrado em São Paulo, eu havia regressado, reencontrado o mesmo Rosalvo militante. Durante a campanha eleitoral fora apresentado ao polêmico médico Antônio Samarone que havia acabado de cursar mestrado em saúde pública na Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e ao inquieto jovem jornalista Luciano Correia, recém-chegado do seu curso de graduação em jornalismo na Universidade Federal da Bahia.

Ademais deste grupo de amigos, àquela noite do mês de julho do nosso primeiro cumprimento estavam no Scooby-Doo o poeta e jornalista Amaral Cavalcante, você, o engenheiro Vanildo Falcão, com quem você era casada, a estudante de Pedagogia Celina Galvão e a estudante de Direito Etodea Teles. Amaral Cavalcante era já um amigo de muito tempo, mas aos demais presentes eu fui apresentado por Rosalvo Alexandre.

Você amadurecera velozmente e, então, casada, era já mãe de Lucas e Bruno. Eu, cinco anos mais velho que você, era pai de Lícia e Denise. Confesso que no primeiro contato a sua figura não me caiu bem. Fiquei com a impressão de haver conhecido uma pessoa presunçosa, cheia de certezas e que gostava de estar no centro das atenções.

Talvez não tivesse agradado meu inconsciente reconhecer a própria imagem de aspirante a intelectual refletida em um novo espelho. O fato é que Jackson venceu as eleições e na última semana de dezembro de 1985 o meu nome  foi anunciado por ele para exercer o cargo de secretário municipal de Educação de Aracaju.

Imediatamente recebi a visita de Rosalvo Alexandre e Antônio Samarone com o pedido de aproveitá-la como assessora do secretário na equipe que eu estava montando com Jackson Barreto para gerir a política municipal de Educação. Aceitei a contragosto, mas a minha contrariedade durou pouco. Em menos de três meses de trabalho na Secretaria a sua inteligência, a argúcia, a competência e a dedicação ao trabalho a haviam transformado no nome mais importante da equipe que eu liderava.

A relação de trabalho se transformou em sólida admiração profissional e amizade. Minha família e a sua se fizeram amigas de convívio habitual. Seus filhos e minhas filhas também estabeleceram boa amizade. Juntos adquirimos o hábito de ir à praia, frequentar bares e restaurantes e fazer longas viagens de carro, hábito que continuo cultivando.  

 Com você e sua família fomos algumas vezes a Gravatá, a Nova Jerusalém, às cidades históricas de Minas Gerais, ao Espírito Santo, a Salvador, a Recife, a Maceió, a um belo giro de carro pela Europa, visitando Portugal, Espanha, França, Alemanha, Itália, Inglaterra e Bélgica. Desfrutamos de muito companheirismo e camaradagem e também de muitas trocas de ideias sobre Educação e outros temas.

Em 1997 o prefeito João Augusto Gama me fez novamente secretário municipal de Educação de Aracaju. Outra vez você foi a principal assessora da minha equipe. Já não necessitava mais que ninguém pedisse por você. Eu havia aprendido a reconhecer e aplaudir o seu trabalho. Você era uma espécie de coringa na minha equipe. Dirigiu a área de administração e finanças, chefiou o gabinete do secretário e assumiu outras importantes responsabilidades.

Em dezembro de 1998 passei a ocupar o cargo de secretário municipal de governo. Sugeri ao prefeito Gama que a nomeasse secretária municipal de Educação. Você exerceu o cargo por dois anos com muito brilho. Tive a satisfação de, informalmente assessorá-la em tal posição.

Da mesma maneira, fui seu interlocutor e assessor informal quando você exerceu de modo competente o cargo de secretária da Educação do município de Estância e vi com muito orgulho a sua ascensão como titular da pasta da Educação do município de Nossa Senhora do Socorro.

Em 2015, Jackson Barreto de Lima me fez o convite para o cargo de secretário de Estado da Educação. Ao discutir com ele a formação da equipe, seu nome foi o primeiro que eu sugeri para o cargo de superintendente executiva, a nova denominação dada à posição de secretário adjunto.

Você foi fundamental ao trabalho que fizemos de recuperação da qualidade do ensino público em Sergipe e de implantação do ensino médio integral como política pública das escolas de ensino médio estadual. Sem você teria sido impossível vencer as resistência internas, externas e principalmente as corporativas que enfrentamos. Hoje, tal política é unanimidade, aplaudida e elogiada por todos, inclusive por muito que tentaram impedi-la.

Pelo papel de liderança que você exerceu na equipe estadual, foi muito honroso para mim indica-la a uma das cadeiras do Conselho Estadual de Educação, onde você propôs importantes alterações no arcabouço normativo da política educacional sergipana contribuindo para a boa colheita de frutos que estamos fazendo atualmente.

Como se fora pouco, aceitou a responsabilidade de fundar comigo a Academia Sergipana de Educação e se integrar ao Rotary Club de Aracaju-Norte, levando com você o engenheiro Agnaldo, seu marido, amor que a maturidade lhe trouxe e com quem você compartilhou muitos anos de uma vida intensamente vivida.

Fiquei muito triste, minha querida amiga, por você partir tão cedo. Angustiado pelas peças que a vida nos prega e descobrir que no momento em que você fechou os olhos eu não estava em Aracaju para participar das exéquias e dar a você o último adeus de um amigo que muito lhe deve.

Saiba, Marieta, que as saudades ficarão para sempre enquanto eu existir. A você, a minha gratidão eterna.

 

 

*Amigo e parceiro de trabalho de Marieta durante 38 anos. 

Comentários

  1. Que texto lindo, Dr. Jorge! Eu não consigo aceitar que ela não estará aqui fisicamente

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  2. Brevíssimo Professor.

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  3. Que bonito, Prof. Jorge!

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  4. Sergipe perdeu um ícone da educação e exemplo de mulher

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  5. Marcia Valéria Lira Santana6 de março de 2023 às 10:25

    Bravo, amigo Jorge. Bravo! Marieta registrou sua escrita nas linhas da história da educação de Sergipe e em muitos momentos delineou os mais fortes fios dos arabescos e rebuscos de tão importante malha social.

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  6. Um mergulho maravilhoso esse texto nos proporciona.
    Saudades de Marieta!

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  7. Uma perda irreparável. Marieta me mostrou o que muitas vezes eu não vi, confesso que os meus olhos passaram a enxergar melhor. Minha gratidão a essa mulher inesquecível.😔❤️😍

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