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A MORTE E A MORTE DO MONSENHOR CARVALHO


 

Jorge Carvalho do Nascimento

 

 

Os humanos costumam fugir da única certeza que a vida nos possibilita: a morte. É ela que efetivamente realiza a lógica da vida. Vivemos para morrer. O problema que se põe para todos nós diz respeito a como morrer. A minha vida, a das pessoas que eu amo, a daqueles que não gostam de mim e dos que eu não aprecio vai acabar. Morreremos.

Podemos mitologizar a morte, encontrar uma vida eterna no Hades. Pouco importa se a vida espiritual nos reserva o paraíso ou o inferno. Passaremos pela putrefação da carne ou pelo processo de cremação. O resultado será o mesmo - retornar ao pó. O maior de todos os problemas é o do desembarque.

Transformamo-nos em pessoas que interagem menos e gradualmente perdemos a sensibilidade dos afetos. A decadência é dolorosa para os amigos que ficam, do mesmo modo que para os velhos quando são deixados sozinhos. Isolar precocemente os velhos e enfermos é fato recorrente, próprio da fragilidade e das mazelas da sociedade contemporânea. As pessoas tendem a se distanciar dos velhos.

Nós, humanos, somos parte de uma sociedade de mortais que tem dificuldade de se identificar com os moribundos. Também por isto a morte é um grave problema para os vivos. A própria morte e a morte dos que partem antes de cada um de nós.

Refleti muito sobre esse tema durante o velório do Monsenhor José Carvalho de Sousa. Ali rememorei lições que aprendi lendo o sociólogo alemão Norbert Elias, principalmente em livros como A SOLIDÃO DOS MORIBUNDOS, a obra SOBRE O TEMPO e também no trabalho A SOCIEDADE DOS INDIVÍDUOS.

Mesmo tendo o Monsenhor Carvalho 98 anos de idade, lembrei da sua energia vital quando o conheci em 1975. Eu um jovem servidor público, ainda não havia completado 20 anos de idade, trabalhando na Secretaria da Educação Cultura do Estado de Sergipe. O secretário da Educação, Everaldo Aragão Prado, descobriu que eu escrevia razoavelmente bem e me confiou a tarefa de ser o redator da correspondência do seu gabinete.

O então Padre Carvalho era uma estrela de muito brilho no clero e na gestão do ensino em Sergipe. Presidia o Conselho Estadual de Educação e algumas vezes eu sentei com ele e com o secretário da Educação. Naquelas reuniões, este último me convocava para redigir documentos de interesse comum da Secretaria e do Conselho.

Até então, desde a adolescência, eu já conhecia o influente Padre Carvalho pelas ondas da Rádio Cultura de Sergipe. Na casa da minha família havia o hábito de ouvir as suas predicações, sempre feitas com a sua característica voz anasalada e a tonalidade clerical própria da geração dos sacerdotes que se ordenaram antes do Concílio Vaticano II.

Já levava um tempo que eu havia abandonado as minhas responsabilidades com a promessa da minha Vovó Petrina, que um dia pediu a São Jorge um neto do sexo masculino, batizado com o nome do santo guerreiro e destinado a ordenação para uma vida sacerdotal. Todavia, nos tornamos, eu e o Padre Carvalho, bons amigos.

Voltei a encontra-lo nos anos 90 do século XX, quando fomos nomeados, eu e ele, para cumprir mandato como membros do Conselho Estadual de Educação. Eu já tinha 39 anos de idade, havia defendido a minha tese de doutoramento e integrava a carreira de docente e pesquisador da Universidade Federal de Sergipe. Ele, 30 anos mais velho que eu.

Naquela fase, divergíamos nas ideias, nas posições ideológicas, mas gostávamos de conversar sobre Filosofia, sobre fé, sobre a vida e a morte e sobre futebol. O Padre José Carvalho de Sousa sempre foi um desportista muito entusiasmado com diferentes modalidades das práticas esportivas. A nossa amizade se solidificou e algumas vezes fui convidado por ele para almoçar na sua companhia, principalmente nas vezes em que ele tentava mudar meu voto em resoluções do seu interesse ou de interesse da Igreja que eram debatidas no Conselho Estadual de Educação. A sua companhia sempre me caiu bem, sempre me foi muito agradável.

Conheci melhor a sua história e, mesmo divergindo de muitas das suas ideias, passei a admirá-lo pela consciência cidadã. Não fosse por nenhuma outra razão, pela corajosa posição que ele tomou em 1964, quando um grupo de estudantes foi expulso do Colégio Estadual de Sergipe, o Atheneu, em face de uma decisão da sua diretora, professora Maria Augusta Lobão Moreira, que acusou de subversivos os seis estudantes que ela excluiu dos quadros daquela importante escola pública.

Foram expulsos os alunos Wellington Mangueira, Mário Jorge Menezes Vieira, Jackson Sá Figueiredo, José Anderson Nascimento, Abelardo Souza e Alceu Monteiro. A expulsão, estimulada pelos chefes militares da ditadura em Sergipe, na prática representava uma sentença de afastamento definitivo da vida escolar, de encerramento da vida estudantil, sem possibilidade de matrícula em nenhuma outra escola.

O Padre Carvalho abriu as portas do Colégio Arquidiocesano Sagrado Coração de Jesus e recebeu quatro dos alunos expulsos do Colégio Estadual, surpreendendo os setores mais conservadores da sociedade do Estado de Sergipe, num ato corajoso. O fato de ter uma posição conservadora não o impediu de garantir que aqueles jovens tivessem a possibilidade de prosseguir nos estudos e ingressar no ensino superior.

O Padre Carvalho foi o último a morrer dentre os clérigos do chamado grupo dos Padres de Dom José, alusão ao trabalho de formação de sacerdotes liderado pelo primeiro bispo de Aracaju, Dom José Thomaz Gomes da Silva. Foi Dom José Thomaz o fundador do Seminário Diocesano de Aracaju.

Muitos anos depois o bispo Dom Fernando Gomes, o segundo a governar a Diocese de Aracaju designou o Padre Carvalho para o cargo de reitor do Seminário. A partir de tal posição, ele fundou o Colégio Arquidiocesano, instituição que dirigiu até ser afastado do posto e das demais atividades clericais, em 2012. Ali, ele começou a morrer, ainda vivo. É claro que a vida passa e os processos de afastamento dos gestores e substituição no comando das organizações é algo natural. Mas, seja lá o que for, as pessoas sentem o golpe do afastamento.   

O Padre Carvalho dirigiu a Rádio Cultura de Sergipe, também propriedade da Arquidiocese de Aracaju, ajudou a fundar a TV Canção Nova e foi diretor do jornal A Cruzada. Fundou também a Associação dos Dirigentes Cristãos de Empresas – ADCE.

Desportista entusiasmado, estimulou inúmeras atividades esportivas no Colégio Arquidiocesano. A instituição escolar sempre se destacou nas inúmeras modalidades das competições esportivas nas quais participou. O esporte sempre foi marcante nas atividades que o Padre Carvalho liderava.

Sensível, ao longo de toda a sua atividade sacerdotal até se transformar no provecto Monsenhor Carvalho, atravessou a vida ajudando as pessoas, oferecendo inúmeras bolsas de estudos a estudantes de famílias que não possuíam suficiência econômica para arcar com o pagamento das anuidades escolares. Foi enorme a fila dos sacerdotes que ele ajudou a formar.

Tudo isto passou pela minha cabeça enquanto estive no seu velório, chocado com o quer observei. Pela sua importância histórica como líder católico, educador, desportista e mecenas, esperava encontrar por lá uma multidão de sacerdotes, freiras, professores, estudantes e desportistas.

O corpo, velado em um galpão aberto anexo à Rádio Cultura de Sergipe, improvisado velatório, recebeu poucas pessoas. Tomei conhecimento que, na oportunidade da celebração de uma missa, à tarde, rezada pelo Arcebispo de Aracaju, havia um número maior de pessoas. Todavia, muito pouco diante da importância e da representatividade do Monsenhor.

Fique por lá entre as 11 horas da manhã e as 12 horas e 40 minutos. Fiz a mim mesmo algumas perguntas inevitáveis: por que um líder católico da dimensão do Monsenhor Carvalho foi velado naquele galpão e não na Catedral Metropolitana? Talvez a Catedral seja reservada exclusivamente ao velório dos arcebispos. Mudei a pergunta: por que o velório não foi realizado em uma das Igrejas de Aracaju?

Lembro-me de dois velórios que acompanhei, ambos no ano de 2005: o Padre Amaral foi velado na Igreja São José, em Aracaju, onde está sepultado. O Padre Arnóbio Patrício de Melo foi sepultado na Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no Conjunto Orlando Dantas, em Aracaju. Achei estranho o velório do Monsenhor Carvalho em um galpão aberto e o sepultamento do Monsenhor Carvalho numa gaveta comum do Cemitério Santa Izabel.

Recebi surpreso a informação de que poucos membros do clero foram visitá-lo durante os dois meses em que esteve internado no Hospital Primavera. Mais surpreso ainda quando perguntei: qual foi a destinação dada à vasta documentação em poder do padre e fui informado que não será entregue a instituições da Igreja Católica porque as autoridades religiosas avaliam não ter como manter o acervo documental. É importante lembrar que ali estão importantes registros da vida católica e educacional sergipana.

Voltei à realidade, cada vez mais distante do mundo real, por paradoxal que pareça: a morte do outro nos leva também a solidariedade, o afeto e a memória. O caixão e o atestado de óbito são as coisas que menos importam. O problema é a despedida, a morte gradual enquanto ainda estamos vivos. Adoecer e envelhecer, ou vice-versa, impõe sofrimento, queiramos ou não. As fragilidades do corpo distanciam os que envelhecem dos que ainda permanecem vivos e socialmente ativos. Morremos antes de morrer. O Monsenhor Carvalho estava morto antes de morrer. Talvez isto explique o apagamento da sua memória. 


 

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