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VIRGULINO, SEBASTIÃO E O PUNHAL

                          Punhal doado por Lampião a Sebastião Baronto


 

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

- “Estou incomodando”?

A voz rouca e grave modulada em alto volume pareceu agressiva aos tímpanos no mesmo momento em que as narinas foram tomadas pelo forte e inevitável odor de banho vencido que molestou a sensibilidade do sisudo e refinado Sebastião Baptista Baronto, delegado do Imposto de Renda em Sergipe.

Servidor Público Federal, sacolejou durante mais de quatro horas pela estrada de rodagem que ligava Aracaju ao próspero município de Capela, onde fora inspecionar os papéis da Intendência. Antes das nove da manhã estava instalado na pensão na qual faria as refeições e pernoitaria, para na manhã seguinte embarcar no Jeep em que viajava e fazer o percurso de volta.

Às 10 da manhã do dia 24 de outubro de 1929, envergando seu terno de linho branco e gravata preta, estava sentado no gabinete do intendente Antão Correia de Andrade, o “Correinha”, major da Guarda Nacional, aparentado do chefe de Polícia, Heribaldo Dantas Vieira. Discutiam as questões de receita e despesa e conferiam os registros de faturamento dos produtores locais de açúcar com os mapas recebidos pela autoridade do Imposto de Renda em Aracaju.

A reunião prolongada e cheia de analises de números extenuou os convivas. Passava já de uma da tarde quando Sebastião se despediu do intendente e voltou ao ambiente da pensão. Desejava um banho antes de almoçar. E foi isto que aconteceu. Banho, novamente perfumado e vestido de modo elegante, como era o seu estilo, passou ao salão do pensionato onde eram servidas as refeições.

Depois de se reunir com o delegado do Imposto de Renda, Antão, que era major da Guarda Nacional, arrumava seus papéis e se preparava para ir almoçar em casa. Recebeu ainda na Intendência a visita de um dos homens do estado maior do bando de Lampião, de quem recebeu o recado:

- “O Capitão Virgulino manda avisar que tá na entrada da cidade. Vosmicê vai agora até ele e ele entra em paz. Se não quiser ir, ele entra com bala e com a rapaziada”.

Lampião entrou na cidade, acompanhado de Correinha, por volta das duas da tarde. Antes de enviar o emissário ao intendente havia cortado os fios dos telégrafos que ligavam Capela às cidades vizinhas. Mandou os seus cangaceiros mais graduados, imediatamente, ocupar os pontos estratégicos da cidade: Moderno, Ezequiel, Arvoredo, Volta Seca, Mourão, Gavião e Zé Baiano.

Coube a Gavião cuidar do pensionato e encomendar a almoço de Virgulino e dos cangaceiros que o acompanhavam. Foi o peso do cotovelo de Gavião que Sebastião Baptista Baronto sentiu sobre o seu ombro direito. Na mão esquerda, o cangaceiro segurava firme o fuzil.

Frio, Sebastião foi muito gentil com o cangaceiro. Não demonstrou nervosismo e disse a Gavião que se sentisse à vontade. Homem sempre cuidadoso com os odores do corpo, o delegado do Imposto de Renda fingiu não perceber que o cangaceiro necessitava de uma boa ablução corpórea e de uma nova muda de roupas. Ainda elogiou o punhal que o cangaceiro portava na cintura. Gavião buscou as informações básicas sobre o seu interlocutor.

Virgulino Ferreira da Silva, acompanhado do intendente foi até o telégrafo, em busca do telegrafista Zózimo Lima, também festejado jornalista e cronista. Lampião estava tranquilo por saber do serviço desconectado, mas considerou razoável prevenir a Zózimo que não tentasse nada que pudesse surpreender os cangaceiros.

Não o encontrou, mas permaneceu tranquilo. Todas as entradas e saídas da Capela estavam guarnecidas pelos seus homens. Ademais, não se considerava ameaçado pela força policial do Estado de Sergipe. Era notório que muitos dos chefes políticos sergipanos eram proeminentes coiteiros de Lampião e do seu bando. Além disto, a distância que separava Capela da capital de Sergipe, caso a sua localização chegasse ao conhecimento da Polícia, era de quatro horas em automóvel pela precária estrada de rodagem.

Lampião pretendia ir ao cinema, como de fato foi, para assistir a película Anjo da Rua, estrelada por Janet Gaynor. Antes, contudo, fora almoçar com os homens do seu bando, à exceção dos que guardavam a entrada e a saída da cidade e a Estação Ferroviária. Estes seriam substituídos após todos tomarem a refeição para que pudessem também se alimentar.

Ao chegar na pensão, Lampião foi apresentado ao seu único hóspede naquele dia: Sebastião Baptista Baronto. Gavião se dirigiu ao chefe e elogiou o ilustre funcionário público federal. Virgulino pôs a mão no ombro do delegado do Imposto de Renda e juntos se afastaram para a sala contígua, onde confabularam.

Ninguém ficou sabendo se Sebastião, como era de praxe entre os homens bem posicionados, ofereceu algum óbolo ou um donativo mais robusto. O fato é que regressaram da conversa, ambos muito sorridentes. Virgulino ordenou a Gavião:

- “Ele gostou muito do punhal. É presente do bando para o delegado do Imposto”.

 Sentaram todos os presentes à mesa e, ao final, antes de partir para o cinema, Lampião e Sebastião apertaram as mãos e o Rei do Cangaço falou:

- “Amanhã, faça uma boa viagem até Aracaju e diga aos seus amigos que Lampião é um homem educado”.   

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.
                                           

Comentários

  1. Educadíssimo!!! Eita Lampião que deixou história. Minha mãe, filha da cidade de Itabaiana contava muitas, até de certa vez em que ela ensinava, parece que no Gandu, e o danado lá chegou e queria porque queria saber onde era a casa da professora. Ela tratou de sumir antes que ele a achasse. Nota: o meu e-mail não é o que aparece aqui. O meu e-mail é tania88meneses@hotmail.com .

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