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VIVER E MORRER DE AMOR


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Era o seu último dia de trabalho como agente do Departamento de Polícia Federal. Naquele ano de 1975 completaria 70 anos de idade e 28 de carreira como policial. Chegou à sede da repartição onde dava expediente, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Ao meio dia, gavetas arrumadas, recebeu um abraço afetuoso do delegado André, o chefe da sua equipe.

às 13 horas, os colegas estavam em volta de uma mesa comprida em forma de U no Bar do Arnaldo, à rua Buenos Aires, uma perpendicular da avenida rio Branco onde durante mais de 20 anos se reuniram às sextas-feiras, para comer uma paca. Faustino foi recebido com muitos aplausos pelos seus pares.

Sentou em lugar destacado, à cabeceira da mesa, ao lado do delegado André. Tomou o primeiro gole de chope, com um colarinho largo, como apreciava. Olhou para a mesa ao lado e avistou uma senhora que aparentava ter cerca de 65 anos, tomando uma cerveja ao lado de uma outra bem mais jovem. Era possível que aquela menina tivesse entre 40 e 45.

Imediatamente, sem explicar nada a ninguém, Faustino levantou-se e se dirigiu àquelas duas negras muito bonitas. Não era difícil perceber ali a presença de mãe e filha. Ar solene e vestido de modo elegante, apesar de haver guardado a gravata antes de chegar ao restaurante, ele falou em voz alta, postado ao lado da mesa: Raimunda!

A mais velha olhou para aquele homem. Percebia-se a sua perplexidade. Ficaram os três em silêncio por cerca de 30 segundos. Tempo que pareceu uma eternidade. Mais longo que minuto de silêncio em jogo de futebol. Ela levantou-se ainda um pouco assustada e perguntou: É você, Faustino?

Ambos saíram da vila do Espírito Santo, já município de Indiaroba, no litoral sul do Estado de Sergipe, ainda muito jovens. Ela, em 1923, para casar com um primo endinheirado estabelecido no comércio de São Paulo. A sua família não aprovava o namoro da moça bem nascida com Faustino, que à época não tinha eira nem beira.

Ele desertou do Exército em Aracaju, no mês de julho do ano seguinte, e ao descobrir que não teria mais a amada Raimunda, migrou para Itabuna, onde prosperou e lá teria permanecido não fosse a descoberta da infidelidade conjugal da mulher com a qual havia casado na região cacaueira. Fato grave para os padrões estabelecidos nas relações entre homens e mulheres à época vigorantes. Teve que fugir do sul da Bahia, com a responsabilidade de dois homicídios: o da própria mulher e o do tabelião que se relacionava com ela.

Estabelecido em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, mantinha um patrimônio sólido e também o prestigiado emprego público de agente da Polícia Federal. A deserção e os homicídios nunca foram descobertos. Casado em Caxias, família de quatro filhos, enviuvou seis anos antes da aposentadoria. A esposa morreu em face de uma infecção renal provocada por diabetes mal cuidada.

Raimunda estava também viúva. Tinha três anos que o marido havia morrido. Ela se desfez dos negócios do marido, investiu no mercado financeiro e mudou para o Rio de Janeiro, onde Elvira, a única filha, era casada com um arquiteto. Raimunda e Faustino passaram 52 anos distantes, sem notícia um do outro. Se encontraram naquele restaurante.

Passaram a se ver com frequência. Almoços, jantares, passeios. Em menos de 60 dias, o namoro engrenou. Objetivo, Faustino sempre a alertava de que o tempo dos velhos é muito curto. Era possível retomar um projeto de vida que ficou mais de meio século hibernando.

Eram católicos e a cerimônia de casamento civil e religioso reuniu amigos, filhos e netos numa tarde de quinta-feira, na Igreja da Candelária. Muito esmero com aquelas bodas. Orquestra de violinos, coro de vozes de crianças, recepção no clube da Lagoa. Lua de mel em Ushuaia, na Argentina.

Em 1976 compraram uma boa casa em estilo colonial, na cidade de Indiaroba. Reformaram e dotaram a habitação de todo conforto. Ali, foram felizes e namoraram durante 11 anos. Um Acidente Vascular Cerebral levou Raimunda, aos 77 anos de idade, numa manhã de sábado, quando ela se preparava para ir à feira.

Faustino providenciou o velório e no mesmo dia ergueu um mausoléu. Na pedra inscreveu o próprio nome ao lado da identificação da sua Raimunda. Voltou para casa e instalou a sua cadeira de balanço preferida na varanda. Apenas 19 dias depois, um infarto fulminante levou o negro corpulento de 82 anos à mesma sepultura.

“Aqui jazem Raimunda e Faustino. Viveram e morreram de amor”. É o que se lê na lápide.

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

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