Jorge
Carvalho do Nascimento*
Não
entendi bem porque nas duas últimas semanas fui procurado por alguns estudantes
de graduação dos cursos de Pedagogia e História e outros da pós-graduação que
relataram haver lido alguns textos meus a respeito do trabalho do historiador
francês Roger Chartier que publiquei no início deste século XXI.
Faz
tempo que estou distante deste debate. Todavia, resolvi atender os pedidos que
me foram feitos pelos estudantes que estabeleceram contato comigo e, como ponto
de partida para que tal grupo abra as portas a este tipo de debate, passo a
eles algumas informações que considero necessárias a quem busca vislumbrar os
caminhos do influente historiador da leitura.
Os
estudos de História da Educação ganharam considerável colaboração a partir da
difusão, entre os pesquisadores da área, de conceitos como os de apropriação,
representação e práticas culturais. Foi muito importante a contribuição do
historiador francês Roger Chartier, principalmente a partir das suas reflexões
sobre práticas de leitura.
Todavia,
era possível perceber naquele período que, em muitos casos, a apropriação
dessas ferramentas de análise fora efetivada a partir de estudos secundários,
ou basicamente através da leitura de uma única obra do autor – A História Cultural:
Entre Práticas e Representações (1990). É compreensível o viés existente nos
estudos a respeito da obra de Roger Chartier no Brasil.
Afinal,
o historiador francês nascido em 1947 chegou aos estudiosos de língua
portuguesa a partir de 1990, por intermédio do trabalho já citado. É necessário
um maior esclarecimento acerca dos conceitos fundamentais difundidos por esse
importante interlocutor dos estudos de História da Educação e dos fenômenos da
cultura de um modo geral, buscando um maior conhecimento a respeito das
condições de produção da sua obra e das suas ferramentas de análise.
Crítico
da história das mentalidades e da chamada história serial de terceiro nível,
Chartier, como expressão da história cultural francesa, voltou suas reflexões
para áreas e objetos culturais como história das edições, história da vida
privada, análise das instituições de ensino, análise das sociabilidades
intelectuais, marginalidade, intelectuais frustrados, festas, morte, vida
urbana, história social, história da leitura, história do livro, história dos
objetos tipográficos, cultura política, configurações, discursos escritos e
também para estudos a respeito do ofício de historiador.
O
fato de haver se debruçado sobre esses objetos possibilitou a Chartier propor
algumas inovações, como lançar luzes sobre os processos e objetos culturais sem
subordina-los a estruturas econômicas ou políticas. Ele também verificou as
formas de apropriação dos bens aí gerados, sem relaciona-las à condição de
pertença a uma classe social dada, mas estabelecendo uma relação com as
maneiras de utilizar as condições intelectuais próprias a cada indivíduo e o
conjunto de relações que este estabelece com o grupo do qual participa, as chamadas
utensilagens mentais.
Os
seus estudos possibilitaram aos pesquisadores de História da Educação perguntar
para que serve o campo, assumindo, a partir daí, o entendimento de que a
Pedagogia, a Didática, o trabalho cotidiano na sala de aula podem ser vistos
como cenários de mudança educacional, de distintas expressões culturais, como
práticas escolares.
O
trabalho de Roger Chartier ensejou aos estudos brasileiros do final do século
XX uma nova postura adotada pelos estudiosos de História da Educação diante dos
métodos, das fontes e dos temas estudados, buscando, da mesma maneira que nos
diversos ramos especializados da História houvesse um diálogo mais fértil com a
Antropologia, a Sociologia, a Filosofia e a teoria literária.
O
seu modo de fazer História e principalmente esses diálogos estabelecidos com
outras ciências foram importantes como estratégias de fuga da banalização
conceitual e explicativa presente na História da Educação a partir dos modelos teóricos
incorporados anteriormente da chamada História Econômica.
Os
estudos de História da Educação anteriores a essas posições propostas por
Chartier estavam pautados por programas e currículos escolares dissociados do
seu quadro original e desconfiados da fonte literária, vista então como dotada
de um estatuto menos real que o documento de arquivo.
Os
estudos de História sob Roger Chartier tiveram a possibilidade de demonstrar as
fragilidades de formulações aligeiradas acerca da cultura popular, a certeza de
que a imprensa produzira uma quase automática passagem do oral para o escrito e
um certo consenso segundo o qual as instituições escolares seriam meras
agências de difusão da ideologia dominante.
Enfrentar
esse tipo de problema foi importante para que a História da Educação fosse
reconsiderada pelos profissionais da Educação que, até então, a viam como uma
disciplina pouco importante. A partir de Chartier foi possível compreende-la
sob outros patamares, como fundamental à compreensão do fenômeno educativo,
superando um certo entendimento de Fundamentos da Educação que generalizava
como iguais os estudos de História e Filosofia da Educação. Tal entendimento
confundia História da Educação com História das Ideias Pedagógicas.
No
caso brasileiro os estudos de História da Educação fundados sob as
contribuições da História Cultural no entendimento proposto por Roger Chartier
ainda se deparavam, no final do século XX, com a dispersão da sua obra,
publicada principalmente na forma de entrevistas e debates com historiadores,
sociólogos, filósofos e também com antropólogos.
Foi
muito importante ao pesquisador brasileiro de História da Educação perceber que
ao voltar-se para a vida social, esse campo pode tomar por objeto as formas e
os motivos das suas representações e pensa-las como análise do trabalho de
representação das classificações e das exclusões que constituem as
configurações sociais e conceituais de um tempo ou de um espaço.
Por
isto, a História Cultural deve ser entendida como o estudo dos processos com os
quais se constrói um sentido, uma vez que as representações podem ser pensadas
como “esquemas intelectuais (...) que criam as figuras graças às quais o
presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser
decifrado” (Chartier, 1990: 17).
Os
processos estabelecidos a partir da História Cultural envolvem a relação que se
estabelece entre a história dos textos, a história dos livros e a história da
leitura, permitindo a Chartier uma fértil reflexão a respeito da natureza da
História como discurso acerca da realidade e ainda de como o historiador exerce
o seu ofício para compreender tal realidade.
*Jornalista,
professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e
presidente da Academia Sergipana de Educação.
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