Jorge
Carvalho do Nascimento*
O
que poderia esperar da vida uma menina cabocla e pobre, nascida numa
pequena propriedade de três tarefas de terra do povoado Sítio das Pombas, também
conhecido como São José das Pombas, parte do município de São João do Cariri,
na Paraíba? Agora, século XXI, São José das Pombas se emancipou, ganhou
autonomia política e se transformou no município de Parari, a mais pobre das
cidades do Estado da Paraíba. Parari continua 250 quilômetros distante de
João Pessoa e do porto de Cabedelo.
A
pequena Sônia veio ao mundo no ano de 1919, 12 anos antes da seca que devastou
os sertões do Norte do Brasil entre 1931 e 1934. Um tempo no qual o conceito de
Nordeste ainda não estava posto em nenhum discurso. Se a vida já era difícil
para sua família, tudo ficou pior em meio a estiagem.
Quando
as chuvas cessaram, seu pai, Romildo, já fora convocado para a prestação de
contas final, destino de todos. Morrera no mesmo ano do nascimento de Sônia, aos 30 anos de
idade, vitimado por um coice de cavalo que lhe partiu a caixa craniana,
enquanto cuidava do gado em meio à Caatinga. Caiu da montaria e o
animal, assustado, reagiu com a patada fatal. A morte do pobre Romildo espantou
toda a gente do Sítio das Pombas, pela pouca idade do jovem vaqueiro.
Entusiasmado com a beleza de deitar, antes
de partir para o além, Romildo somente dormia depois da animada sessão de sexo com a sua Valentina. Deixou uma alentada prole de sete filhos. Foram cinco homens e duas mulheres.
Willison, Sérgio, Gladson, Kleber e Erivaldo, os homens, foram
“voluntariamente” viver, em 1932, num dos “campos de concentração” criado pelo
Governo de Getúlio Vargas, no Estado do Ceará.
A
fome e a impossibilidade de cultivar o que quer que fosse na terra esturricada
foram os estímulos ao voluntariado dos rapazes. Willison, o mais velho, contava
19 anos de idade, enquanto o mais novo, Erivaldo, completara 15 voltas ao redor do
sol. Permanentemente o sol, presente no dia a dia daquelas terras áridas dos
confins paraibano.
Os
“campos de concentração” eram espaços coletivos de moradia masculina,
controlados por soldados do Exército e da Polícia Militar. Ali, os homens
recebiam três refeições por dia e trabalhavam cavando açudes e abrindo estradas
no semiárido brasileiro. Ao final de cada semana recebiam uma pequena
retribuição monetária. O suficiente para permanecer miseravelmente vivos e
continuar trabalhando sob a inclemência do astro rei.
Se
aquela solução parecia razoável à sobrevivência dos homens na estiagem, o que
fazer com as meninas? Ana, a mais velha, mal completara 14 anos. Sônia contava
13 anos desde o seu nascimento.
A
mãe Valentina, fragilizada pela fome, não sabia o que fazer para buscar o
sustento das filhas. A bodega de Oliveira e a padaria de Joedson eram os dois
principais estabelecimentos comerciais da povoação. Joedson, sozinho, dava
conta do seu diminuto negócio, enquanto Oliveira era o padeiro e o vendedor que
atendia no balcão ao esquálido número de consumidores. Não havia necessidade de
contratar mais ninguém para colaborar com a venda que era inferior a 50 pães
por dia.
Tomada
da coragem que somente o desespero proporciona, Valentina partiu cheia de
preocupações para o Sobrado da Várzea, imponente bangalô de quatro águas e dois
pavimentos, todo avarandado, sede da Fazenda Brejo Raso, onde reinava absoluto
o Coronel Garcia, descendente em linha direta de importante família. Seus
ancestrais foram senhores que dominaram todas as terras do Nordeste da Bahia, desde
as praias limítrofes a Salvador até a margem direita do rio São Francisco.
Senhor
de baraço e cutelo, o Coronel Garcia costumava ostentar orgulhoso, e exibir aos
amigos que recebia na sua propriedade, o certificado com o registro da sua
patente, adquirida junto à Guarda Nacional. Elegante, bem-vestido, cabelos
pretos lisos e bem cortados, sempre grudados na cabeça com a ajuda de porções
generosas de brilhantina importada da França, o Coronel Garcia era um vulcão de
vaidade.
Os
dedos sempre cheios de anéis de ouro cravejados com valiosas pedras lapidadas pelos melhores especialistas. Do mesmo modo, a grossa corrente de ouro posta na lapela
dos bem cortados ternos de linho branco ou tropical inglês em risca de giz
servia para prender o relógio Patek Philippe, guardado no bolso do colete, do
qual nunca se separava.
Engenheiro
agrônomo formado na Inglaterra, o Coronel Garcia era chefe do Fomento Agrícola
no Estado da Paraíba, repartição sediada na capital, distante 250 quilômetros
da sua fazenda. Ali, no Fomento, o Coronel Garcia raramente era presença notada. Sua
secretária, Margarida, colecionava os papéis que ele necessitava assinar e uma
vez a cada dois meses os levava à residência do Coronel. A sua esposa, Mirian, que detestava ir à fazenda em São José das Pombas, se encarregava de recolher as assinaturas, caso ele não tivesse tempo de ir até
a repartição. Bimestralmente o coronel estava durante uma semana na capital e
aproveitava para visitar a Recebedoria Federal, onde assinava a folha de
pagamentos e recolhia os dois envelopes com a polpuda remuneração correspondente
a cada mês do bimestre.
O
Coronel Garcia, aos 55 anos de idade, gostava mesmo era de permanecer na casa
da fazenda e das visitas que fazia todas as noites ao Bazar de Dona Clarice, um
parque masculino de diversões que atraía os ricos e, também, os remediados
proprietários de terra das cercanias. O Bazar de Dona Clarice se enchia de
endinheirados e, muitas vezes, na porta, era difícil conseguir uma estaca livre
para amarrar a montaria.
Valentina
chegou ao Sobrado da Várzea com as duas meninas vestidas na melhor chita que
possuíam. Eram vestidos rodados, com vistosas estampas. Banhadas, cabelos escovados,
as adolescentes chamaram a atenção do Coronel pelas ancas largas e
protuberância das tetas já avantajadas. A libido do Coronel Garcia foi às
alturas. Com fértil imaginação de homem maduro e arrogante, pensou que poderia ser sua a
primeira pernada.
Ouviu
a exposição de Dona Valentina. O pleito era o de que suas meninas fossem
aceitas como domésticas no Sobrado da Várzea. Pedido negado pela má intenção, o Coronel disse,
todavia, lembrar que Dona Clarice necessitava de uma menina para ajudar nos
trabalhos da cozinha e outra para servir às mesas.
Dona
Valentina argumentou acerca da má fama do Bazar de Dona Clarice. Recebeu do
Coronel Garcia a certeza de que não havia perigo e que as meninas estariam sob
os seus cuidados. Teriam dele guarda e proteção. Ganhariam um bom dinheiro,
morariam no local de trabalho e uma vez a cada quinzena teriam dois dias de
folga para visitar a mãe.
Valentina
fez uma última recomendação ao Coronel Garcia. Cuide bem delas. As duas são
donzelas, nunca conheceram safadeza de homem. Isto era música aos ouvidos do
velho perdigueiro. Na mesma noite, ambas estavam servindo as mesas nos salões
do Bazar de Dona Clarice.
Os
lábios pintados com batom ordinário e as duas patacas de rouge nas maçãs do
rosto de cada menina não escondia que elas estavam tomadas de pânico diante
daquela nova situação.
*Jornalista, doutor em Educação, professor aposentado do Departamento de História, do Mestrado e do Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe. É membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.
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