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O LEGADO EDUCACIONAL DE DOM LUCIANO JOSÉ CABRAL DUARTE




 

Jorge Carvalho do Nascimento

 

 

A memória está depositada nas lembranças dos velhos, em registros escritos nas bibliotecas, em computadores, em residências de particulares, em empresas, no espaço urbano, no campo.

Sergipe perdeu, no dia 29 de maio de 2018, um dos seus filhos de maior importância, um homem que nos legou valiosos registros de memória que dão sentido à História deste Estado durante a segunda metade do século XX. O Arcebispo Emérito de Aracaju, Dom Luciano José Cabral Duarte, cujo centenário de nascimento celebramos em 2025, foi uma das figuras que mais contribuiu com as práticas educacionais em Sergipe, sob todos os aspectos. Como todos os homens de brilho e com capacidade de liderar, despertou também muitas polêmicas em torno do seu nome.

Ao longo de toda a sua vida de sacerdote e intelectual da Educação, Dom Luciano Duarte teve ao seu lado, como guardiã do seu trabalho e, também da sua memória, a expressiva figura da sua irmã, Carmen Dolores Cabral Duarte, a quem dedico esta minha exposição. Ela foi uma espécie de secretária particular do prelado.

Se já o era antes, agora é fundamental que os intelectuais brasileiros aprofundem a reflexão sobre as formas de ação de Dom Luciano José Cabral Duarte e se debrucem sobre o seu trabalho como intelectual da Educação. Ele foi um pastor obstinado com a sua missão, homem de personalidade igualmente forte, alta sensibilidade social, extraordinária capacidade de realização e um refinado intelectual no trato das ideias.

Dom Luciano Duarte era Doutor em Filosofia, professor, fundador da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe – a FAFI, do Ginásio de Aplicação – o GA e da Universidade Federal de Sergipe – a UFS. Foi também jornalista, radialista, dinamizador de um importante projeto de assentamento agrário, escritor, uma das principais lideranças da Igreja Católica no Brasil e Vice-Presidente do Conselho Episcopal Latino-Americano – CELAM.

Como já o fez, a escritora, acadêmica e professora Ana Maria Fonseca Medina, agora, é tarefa de todos nós analisar a sua trajetória de vida. Ana Medina descortinou a vida e o trabalho de Dom Luciano a partir das suas atividades em família, no período durante o qual foi estudante, da sua vida de sacerdote católico, de intelectual e profissional da educação, da cultura e da assistência social.

Ana nos mostrou como é notável a contribuição dada por ele. Revelou o quanto é importante aprender com a sua memória, envidar esforços para compreender o contexto sob o qual ele viveu, período que marca o passado recente da vida brasileira. É este o melhor caminho para aprofundar a narrativa histórica.

Tive a honra de trabalhar com Ana Medina, Carmen Duarte, Anamaria Gonçalves Bueno de Freitas, Edmilson Menezes e outros importantes intelectuais no período em que Carmen decidiu organizar o acervo documental que pertenceu a Dom Luciano Duarte e que atualmente se encontra depositado no Museu de Arte Sacra, em São Cristóvão, instituição fundada pelo próprio arcebispo durante o período no qual governou a Arquidiocese de Aracaju e liderou a Igreja Católica em Sergipe.

Foi emocionante conhecer de perto as ideias e o trabalho executado ao longo da sua vida pelo Arcebispo Emérito de Aracaju. Rememorei a minha infância, ouvindo ao pé do rádio, na frequência da Rádio Cultura de Sergipe, algumas vezes com minha mãe, Ivanda, outras tantas com o meu pai, Antônio, algumas outras com a minha avó materna, Vovó Petrina, a sua Hora Católica, ou a crônica Nossa Opinião que ele escrevia em determinadas ocasiões especiais.

Lembro-me da sua figura dominando o cenário, nos sermões do primeiro de janeiro na Praça Olympio Campos, ao fim da procissão de Bom Jesus dos Navegantes. Lembro-me ainda do adolescente e depois do jovem curioso e fascinado que eu era com a possibilidade de aprender pelas homilias pregadas durante a Semana Santa, na Catedral Metropolitana.

À época em que trabalhei na organização do seu acervo, eu era professor universitário, interessado na pesquisa em História, nos temas da Educação e nas coisas da vida intelectual do Estado de Sergipe, que adotei e assumi como meu. Trabalhando com o acervo de Dom Luciano Duarte fui apresentado ao rico material existente na Biblioteca Jean Guitton e a uma massa de documentos extremamente importantes para a nossa História da Educação.

Executando tal trabalho dialoguei muito com o filósofo Edmilson Menezes, responsável pela anotação e organização da tese de doutoramento de Dom Luciano Duarte, traduzida para o português e publicada em 2003 sob o título A NATUREZA DA INTELIGÊNCIA NO TOMISMO E NA FILOSOFIA DE HUME.

Foi importantíssimo conhecer as matrizes do pensamento filosófico de Dom Luciano Duarte e perceber que muito disto foi lastro para as ideias que lhe permitiram executar a obra educacional que concebeu. As ideias e a obra educacional de Dom Luciano resultam das experiências que ele teve ainda como estudante, da sua postura como sacerdote, do seu trabalho como professor e gestor de instituições educacionais.

Aprendi bastante ao trabalhar na editoração do livro ESCRITOS FILOSÓFICOS, organizado por Edmilson Menezes Santos, do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe. Um outro livro, ESCRITOS DE EDUCAÇÃO, foi organizado por mim e pela Professora Doutora Anamaria Gonçalves Bueno de Freitas, ambos, à época, docentes, respectivamente, do Departamento de História e istóriado Departamento de Educação da UFS.

A coletânea de textos dos dois livros foi organizada através do recolhimento do material existente no arquivo pessoal de Dom Luciano e em arquivos de Sergipe e de outros Estados.

Em conferência que proferiu nesta Academia Sergipana de Letras no dia 27 de janeiro de 2025, à qual já fiz referência, a escritora Ana Maria Fonseca Medina chama a atenção para o fato de que ainda menino, nos seus primeiros anos de estudante, quando realizava em Aracaju os estudos preparatórios ao Seminário, Luciano Duarte já tinha entusiasmo pela atividade de ensinar, de dar aulas aos demais colegas. “Nos recreios, era solicitado para ensinar aos colegas que o consideravam o professor-mirim” (p. 4).

Obteve a sua formação inicial em Filosofia no Seminário de Olinda. Depois cursou Teologia no Seminário de São Leopoldo, Estado do Rio Grande do Sul, onde recebeu a ordenação como diácono. Foi ordenado padre em Aracaju, aos 23 anos de idade, numa cerimônia presidida pelo bispo de Penedo, Dom Fernando Gomes, posto que o bispo de Aracaju, Dom José Thomaz Gomes da Silva, se encontrava enfermo e hospitalizado. O padre Luciano Duarte rezou a sua primeira missa em 19 de janeiro de 1948.

Na década de 50 do século XX, voltou a estudar e obteve o título de Bacharel em Teologia pela Faculdade de Teologia de São Paulo, viajando logo depois a Paris, em busca de um curso de pós-graduação em Filosofia. Retornou a Sergipe entusiasmado com as ideias de filósofos como Sócrates, Platão, Blaise Pascal, Jacques e Raissa Maritain, Claudel, Bergson, Simone Weill, Albert Camus e Jean Guiton.

Em Paris estudou no Instituto Católico, onde se aprofundou em Filosofia Escolástica, Teologia Tomista e Teologia Escolástica. O passo seguinte foi o da obtenção do título de Doutor em Filosofia na prestigiada Universidade Sorbonne.

Mesmo antes do seu doutoramento, coube ao segundo bispo da Diocese de Aracaju, Dom Fernando Gomes, a sensibilidade de perceber a capacidade que tinha o padre Luciano Duarte de ser uma liderança com perfil para coordenar as atividades culturais e educacionais diocesanas. A partir dos 25 anos de idade, em 1950, o jovem sacerdote recebeu do governador da Diocese importantes missões que foram ampliadas nos anos seguintes.

Em 1958 foi orientador da Juventude Universitária Católica – JUC, mas anteriormente já assumira os cargos de diretor do jornal católico A Cruzada e, também a responsabilidade pela fundação da Faculdade Católica de Filosofia, pela criação do Ginásio de Aplicação e, posteriormente da Universidade Federal de Sergipe

Deste modo, entre os anos de 1950 e 1968, o padre Luciano liderou a criação da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe, a partir de 1951; orientou a JUC, a partir de 1958; fundou o Ginásio de Aplicação, em 1959; e, a Universidade Federal de Sergipe, em 1967. O seu empenho no processo de criação dessas instituições revela a importância que vinha ganhando o prelado na vida sergipana.

A sua trajetória foi de Padre, monsenhor, bispo auxiliar, bispo e arcebispo. Na década de 50 e depois nos anos 60, circulava pelas ruas de Aracaju em uma bicicleta, em uma motocicleta e depois em uma kombi. Mesmo antes de possuir o título de Doutor em Filosofia pela Sorbonne já demonstrava a preocupação com a importância das instituições educacionais e culturais.

Todos que se debruçam sobre a vida e a obra de Dom Luciano Duarte percebem de pronto a sua predileção pelos temas culturais e educacionais. Sejam os que aplaudem entusiasmadamente os seus trabalhos ou os seus críticos. A todos, sem exceção, essas questões são inescapáveis. É impossível não reconhecer as suas contribuições em tais campos.

Deste modo, ele percebeu como uma importante contribuição à cultura do seu Estado e ao serviço da Igreja o convite que recebeu de Dom Fernando Gomes para dirigir o semanário A Cruzada. Antes de assumir a direção do jornal resolveu fazer um curso de datilografia, concluído em dezembro de 1949.

Quando assumiu o novo encargo, ele buscou renovar o quadro de colaboradores do periódico e abriu mais espaços para a literatura, os temas da cultura e da educação. Em julho de 1950 criou a seção denominada Galeria dos Poetas e publicou autores já consagrados e outros até então pouco conhecidos no mundo literário como Ana Leonor Fontes, Passos Cabral, Auta de Souza, Cleômenes Campos, Santo Souza, Góes Duarte, Amália Soares de Andrade, Garcia Rosa, Hermes Fontes e Jacinto de Figueiredo.

Nos cinco anos durante os quais dirigiu A Cruzada, Luciano Duarte transformou em habituais as colaborações de Paulo Machado, Santos Mendonça (com textos sobre esportes), Macário de Antâo, o Padre Maurício Fernandes, Leyda Régis, Antônio Conde Dias, José Amado Nascimento e Santo Souza.

Ele foi incansável no trabalho de circular pelas ruas de Aracaju procurando amigos que tinham formação adequada a fim de lecionar nas escolas e faculdades que criou. E em outras que passou a assistir. Muitas vezes pedia que o amigo trabalhasse gratuitamente, posto que a instituição educacional ainda não estava em condições de remunerá-lo.

Influenciado intelectualmente por filósofos franceses como Charles Péguy, Claudel, Jacques Maritain e Léon Blois centrou no diálogo entre a fé e a razão a temática do trabalho que fez junto aos militantes da Juventude Universitária Católica – a JUC. Era, de fato, um professor que buscava conquistar corações e mentes dos estudantes universitários.

Em seu trabalho sobre a Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, o historiador João Paulo Gama de Oliveira acentua o modo como trabalhou Dom Luciano para atingir os seus objetivos: “Convidando professores de porta em porta, pedalando sua bicicleta, ou mesmo com a participação de outros docentes, já anteriormente empenhados na criação da instituição, Luciano Duarte organizou um grupo, com experiência na docência e reconhecidos no campo educacional. Os docentes da FCFS eram médicos, dentistas, advogados, engenheiros, e poucos licenciados, como Maria Thétis Nunes e Cleonice Xavier de Oliveira (p. 53)”.

Como pontua um outro historiador, Magno Francisco de Jesus, em estudo publicado na Revista Brasileira de História das Religiões, “a aceitação de tais convites expressava um significado bem mais importante do que o retorno financeiro: era o reconhecimento social e os laços afetivos construídos com o diretor da FAFI. Ensinar nas embrionárias faculdades sergipanas constituía uma oportunidade de aumentar o reconhecimento social, de legitimar-se como intelectual renomado. Contudo, outro aspecto de fundamental relevância era a origem do convite.  Entre o final da década de 50 e início dos anos 60 do século XX, monsenhor Luciano Duarte já era tido como um dos mais expressivos intelectuais sergipanos e reunia uma importante e sólida rede de sociabilidade. O convite era um sinal de confiança do pastor. O aceite era a certeza da credibilidade nas ações do mesmo” (p. 119).

Foi assim que em 1950 ele conseguiu reunir um grupo de professores e outros profissionais com diploma do ensino superior para fundar a Sociedade Sergipana de Cultura, entidade que tinha a pretensão de manter a Faculdade Católica de Filosofia. A Faculdade foi criada formalmente no dia 12 de março de 1951 e passou a funcionar nas dependências do Colégio Nossa Senhora de Lourdes, das Irmãs Sacramentinas.

O bispo Dom Fernando Gomes recebeu da Congregação da Faculdade uma lista tríplice de nomes e recaiu sobre o padre Luciano Duarte a escolha que fez o prelado para o cargo de primeiro diretor da instituição. O padre Luciano conseguiu, em tempo considerado curto, os recursos necessários para construir o edifício e instalar a Faculdade num prédio concebido para receber a escola, na zona sul da cidade capital do Estado de Sergipe.

Com o seu prestígio atraiu intelectuais estrangeiros que viviam em Sergipe e assumiram funções docentes, como o padre Mário Cinciripini, que lecionou Sociologia; o frade alemão Edgar Stanykowski, professor de Latim; e, o professor de Francês, Jacques Ramondot, diretor da Aliança Francesa em Aracaju, dentre tantos outros.

Dentre os sergipanos, ele convidou jovens intelectuais católicos, a exemplo de José Silvério Leite Fontes, Manoel Cabral Machado, Fernando Porto, Gonçalo Rollemberg Leite, José Amado Nascimento, Paulo de Almeida Machado, Emanoel Franco e Maria Thétis Nunes.

O próprio padre Luciano Duarte foi professor de Filosofia, Teologia, Latim e Psicologia. A professora Ana Maria Fonseca Medina foi sua aluna e, durante a conferência já aqui referenciada, afirmou: “Dava-se ao trabalho de reunir seus alunos para um curso gratuito de conversação francesa aos sábados” (p. 13).

A inauguração, em 1959, do novo edifício da Faculdade Católica de Filosofia, permitiu também que fosse fundado o Ginásio de Aplicação. O novo edifício da rua de Campos, no bairro São José, era amplo e concebido para as atividades educacionais. O Ginásio foi criado como oficina pedagógica e campo de estágio para os estudantes das licenciaturas. A data oficial de criação do Ginásio é 30 de junho de 1959.

Em pouco tempo, o Ginásio de Aplicação se transformou em uma das mais importantes dentre as escolas buscadas pelos filhos das famílias da elite de Sergipe e se tornou uma importante fonte de financiamento para os cursos mantidos pela Faculdade Católica de Filosofia, que eram deficitários economicamente.

Os exames para admissão ao GA eram muito rigorosos e somente os estudantes escolarizados em bons estabelecimentos de ensino obtinham aprovação. Todavia, nas ocasiões em que os filhos das famílias menos abastadas eram aprovados, a prática do Ginásio de Aplicação para tais casos era a da dispensa do pagamento das mensalidades.

A autorização para que o GA oferecesse o curso Colegial fez com que a escola tivesse sua denominação modificada em 1965 para Colégio de Aplicação ou Codap, como ficou mais conhecido.

Pouco citada, porém não menos importante, foi a contribuição oferecida por Luciano Duarte durante o processo de criação da Faculdade de Serviço Social de Sergipe. Foi uma das lideranças de Sergipe que muito contribuiu para criar a instituição educacional, além de haver integrado o seu corpo docente.

A ideia de criar a Escola foi do então Bispo de Aracaju, Dom Fernando Gomes. Outra vez, o governo da Diocese encarregou o padre Luciano Duarte de coordenar o trabalho. Coube a ele fazer os contatos com a madre Albertina Brasil Santos, religiosa da Congregação das Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado.

A Congregação havia já criado outras escolas de Serviço Social em diferentes lugares do Brasil. Foi com Luciano Duarte que a madre Albertina discutiu os diferentes aspectos de organização da Escola e a formação do corpo docente. Ele mesmo assumiu a responsabilidade pela cadeira de Filosofia e ajudou na organização do primeiro concurso vestibular.

A partir de 1963, o padre Luciano Duarte foi nomeado para integrar o Conselho Estadual de Educação em Sergipe, onde presidiu a Câmara de Ensino Superior. Nesta condição, Luiz Rabelo Leite, secretário da Educação do governador João de Seixas Dórea o nomeou para liderar o grupo de trabalho que objetivava criar uma universidade federal em Sergipe.

No mês de julho do mesmo ano, um decreto estadual autorizou que as instituições de ensino superior sergipanas fossem transferidas para a Universidade. No processo de criação da Universidade Federal de Sergipe buscou o apoio de outros intelectuais como o médico Antônio Garcia Filho.

Foram muitos os reveses vividos pela sociedade brasileira entre 1963 e 1967. Todavia, Luciano Duarte não esmoreceu quanto a sua responsabilidade de coordenar o trabalho de criação da Universidade. Finalmente, em 28 de fevereiro de 1967, o decreto-lei 269 criou a Fundação Universidade Federal de Sergipe.

Luciano Duarte foi o primeiro presidente do Conselho Diretor da Fundação, mantenedora da Universidade. O primeiro reitor, João Cardoso do Nascimento Junior, foi empossado por ele no dia 15 de maio de 1968. A Universidade estava instalada como resultado de um processo que durou cinco anos com muitos embates.

Indiscutivelmente, dentre os muitos sonhos que o padre Luciano Duarte sonhou, estavam os brotos de sementes lançadas por intelectuais que o precederam, como Maurício Graccho Cardoso que no mesmo ano em que nasceu o sacerdote, 1925, tentou criar em Aracaju uma Faculdade de Direito e outra de Odontologia.

O mesmo Graccho Cardoso que mandou buscar na Bahia o engenheiro Archimedes Pereira Guimarães para aqui fundar um curso superior de Química. A Faculdade de Química existiu apenas durante dois anos e fechou por falta de sergipanos à época interessados em fazer um curso superior de Química. Não houve matrícula no segundo ano de funcionamento da escola.

Com toda certeza, a Universidade de Sergipe foi desejada pelos que fundaram, em 1950, a Escola de Química de Sergipe, a Faculdade de Ciências Econômicas e a Faculdade de Direito. O mesmo sonho sonhado por Dom Fernando Gomes e pelo padre Luciano Duarte ao criarem a Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe.

O mesmo grupo da Faculdade Católica de Filosofia, liderado pelo padre Luciano Durante fundou, em 1954, a Escola de Serviço Social. Sem falar da Faculdade de Medicina de Sergipe, sonho do médico Augusto César Leite, em 1953, concretizado pelo também médico Antônio Garcia Filho e pelo seu irmão, governador Luiz Garcia, em 1961.

Essas seis instituições de ensino superior que existiam em 1966 foram o ponto de partida que permitiram a Dom Luciano Duarte empreender ao lado de outros sergipanos o trabalho que resultou na Universidade Federal de Sergipe, fundada em 1967 e implantada efetivamente em 1968.

A escritora Gizelda Morais, biógrafa de Dom Luciano Duarte, afirma que ele “poderia ter defendido a criação de uma universidade católica, como se fez em outras dioceses, mas não é isso que ele aspirava para Sergipe. Conhecendo as dificuldades econômicas de seu pequeno Estado, as dificuldades financeiras para manter as duas faculdades católicas já existentes, e reconhecendo a importância de uma Universidade Federal para favorecer o desenvolvimento da pesquisa, do ensino e da cultura, ele se inclinou decisivamente nessa direção” (p. 231).

O processo de criação da Universidade enfrentou dificuldades externas importantes. Gizelda Morais reproduz um depoimento do próprio Luciano Duarte sobre os entraves: “No plano federal não havia boa vontade do Ministério da Educação. Este pobre processo da Universidade Federal de Sergipe passou por três relatores no Ministério da Educação. O primeiro era sergipano, o Dr. José Barreto Filho, que renunciou a sua indicação para relator do processo. (...) Foi designado um outro, um paraibano que também renunciou. (...) Finalmente foi nomeado um terceiro relator, Dr. Newton Sucupira. Quando eu soube disso tomei um avião e fui ao Rio de Janeiro, na sessão do Conselho. (...) ele me recebeu friamente, no corredor do Conselho. (...) Ele disse: (...) ‘devo dizer ao senhor que sou um homem exigente até a irritação’. (...) eu disse: ‘Eu não vim aqui para lhe pedir um favor, vim convidar para o senhor ir a Sergipe, ver com seus olhos as condições que nós temos. (...) Ele me respondeu à queima roupa: ‘Eu aceito o convite”.

Newton sucupira veio a Sergipe. Luciano Duarte faz um relato da visita do Conselheiro: “Terminada a visita, quando eu fui levar Dr. Newton Sucupira ao aeroporto, ele me chamou ao lado e disse: ‘Já formei meu conceito, vou dar parecer favorável e Sergipe terá sua universidade federal’” (pp. 236-238).

Uma outra polêmica que cercou a criação da Universidade Federal de Sergipe foi a opção entre uma autarquia ou uma fundação. Autarquia era o modelo institucional das universidades brasileiras mais antigas e tradicionais. As fundações eram o modelo escolhido pelos gestores que assumiram o comando do Estado brasileiro depois do golpe militar de 1964.

A escritora Gizelda Morais publicou no livro já aqui citado um depoimento de Dom Luciano Duarte a respeito do tema. “Quando fui escolhido para acompanhar o processo de criação da UFS no Conselho Federal, (...) lá me informaram que, a partir de um ano atrás, se tinha decidido que não seria mais criada nenhuma universidade tipo autarquia. (...) Eu procurei o Dr. Newton Sucupira, designado para ser o relator do processo e perguntei a ele se isso era exato. Ele me disse: ‘Uma universidade do tipo autarquia não tem a menor possibilidade de ser aprovada no Conselho’. (...) De modo que eu não tinha escolha. Ou aceitava esse modelo ou não aceitava nada. Eu, simplesmente, me curvei diante da circunstância” (pp. 240-241).

 Até os dias atuais, dentre os nascidos em Sergipe, somente Luciano Duarte teve assento no Conselho Federal de Educação. A atual designação do órgão é Conselho Nacional de Educação e sob esta nova denominação teve assento o professor José Fernandes de Lima que, durante oito anos, foi reitor da Universidade Federal de Sergipe.

Nascido em Alagoas, José Fernandes de Lima, além de reitor da UFS, exerceu também, em Sergipe, o cargo de secretário de Estado da Educação, durante a gestão do governador Marcelo Déda. Lima foi não apenas membro do Conselho, mas também exerceu a presidência do colegiado, um dos cargos de maior relevância no quadro da política educacional brasileira.

Luciano Duarte foi nomeado, em março de 1968, para integrar o Conselho Federal de Educação, onde atuou durante 15 anos, exercendo três mandatos. Como conselheiro, ele sempre integrou a Câmara de Ensino Superior. Em tal período, ele foi relator de 60 processos, todos ligados ao ensino superior.

O Conselheiro emitiu pareceres reconhecendo cursos e instituições de ensino superior, credenciando cursos de pós-graduação, autorizando a abertura de novos cursos e instituições, validando estudos, revisando convênios, alterando currículos e regimentos, revalidando diplomas.    

Dom Luciano Durante foi presidente nacional do Movimento de Educação de Base – o MEB. Fundado em 21 de março de 1961 pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o MEB é uma sociedade civil de direito privado. A sua missão é promover o desenvolvimento de programas de Educação Popular, beneficiando jovens e adultos.

O Movimento foi fundado inicialmente no Rio Grande do Norte e em Sergipe, com a liderança do saudoso bispo de Aracaju, Dom José Vicente Távora. Foi ele o responsável pela apresentação da proposta de criação do Movimento, em 1959, durante reunião da Confederação dos Bispos do Nordeste que aconteceu em Natal. Em 1960 foram inauguradas as escolas radiofônicas na Rádio Cultura de Sergipe, modelo depois incorporado por outras emissoras de rádio católicas de diferentes regiões do Brasil.

Mesmo tendo a primeira experiência de educação pelo rádio do MEB se realizado em Natal, foi na Rádio Cultura de Sergipe que ela tomou a forma de programa de massa. O entendimento do MEB em Sergipe foi o de que o homem, além de saber ler deveria ser capaz de lutar pelos seus ideais. O MEB gerou muitas fontes de luta e estimulou a criação de vários sindicatos rurais em Sergipe.

Dom Luciano Duarte fez um depoimento sobre o MEB para o programa Videoteca Aperipê Memória, da TV educativa mantida pelo Governo do Estado de Sergipe. A sua biógrafa, Gizelda Morais, publicou em livro parte do depoimento do prelado: “O Movimento de Educação de Base foi uma ideia que os bispos do Brasil tiveram e contaram, para o seu lançamento, com o apoio generoso do presidente Jânio Quadros. Então muitas emissoras foram compradas para as dioceses, e a nossa Rádio Cultura foi uma delas. A educação de base era dada em aulas radiofônicas. Surgiram os rádios cativos, rádios que só alcançavam uma emissora, no caso a emissora aliada ao MEB. E por aí se fez um bom trabalho” (p. 285).

O Movimento de Educação de Base recebeu, em 1968, o prêmio “Mohamed Rehza Pahlevi”, sendo considerado em todo o mundo a obra que mais se destacou no trabalho de educação funcional e promoção humana. Em agosto de 1971, Luciano Duarte assumiu a sua presidência nacional. Em 1977, Dom Luciano Duarte foi substituído na presidência do MEB pelo cardeal Dom José Freire Falcão.

A Assembleia Geral do Conselho Episcopal Latino-Americano – CELAM elegeu Dom Luciano Duarte, em novembro de 1972, para a presidência do Departamento de Ação Social, com mandato de dois anos. Era um momento no qual a Igreja vivia muitos conflitos ideológicos no Brasil e na América Latina.

A sua indicação e a articulação do seu nome foi conduzida por Dom Eugênio Sales, a quem substituiu. Dom Luciano era visto como um bispo conservador, um tradicionalista que se opunha aos entusiastas da Teologia da Libertação, da qual ele era um crítico contundente.

O trabalho que realizou o fez conquistar um novo mandato, em 1974, Ele recebeu 34 votos dos 32 necessários para a reeleição e permaneceu no cargo por mais quatro anos. Deste modo, entre os anos de 1970 e 1990, ele permaneceu como uma das mais importantes lideranças do clero latino-americano. 

Em 1972, Dom Luciano integrou a delegação de representantes brasileiros na Conferência Internacional da Unesco, no Japão. A delegação foi chefiada pelo então ministro da Educação, Jarbas Passarinho, e teve como tema Educação de Adultos.  

Dom Luciano Duarte foi agraciado com o título honorífico de Palmes Académiques, do Ministério da Educação da França. Em 1974 foi condecorado com o título de Comendador da Ordem do Mérito Educativo do Brasil.

A importância do trabalho de Dom Luciano José Cabral Duarte pode ser sentida pelo muito que ele deixou no Brasil e nos lugares do mundo que percorreu. Pesquisando para a produção deste texto sobre O TRIBUTO EDUCACIONAL DE DOM LUCIANO DUARTE, encontrei no Banco de Dissertações e Teses das Universidades Brasileiras 102 trabalhos que tratam integralmente ou parcialmente desse importante intelectual da Educação.

Além disto, pesquisando em periódicos científicos e anais de eventos, registrei 419 trabalhos publicados. Existem ainda 39 livros publicados de autoria de Luciano Duarte e sobre Luciano Duarte.

É, sem nenhuma dúvida, um acervo que diz muito da importância que tem o patrono da Cadeira 14 da Academia Sergipana de Educação e imortal da Academia Sergipana de Letras. Não obstante tão rica fortuna crítica, ainda há muito que afirmar e muito que compreender sobre tão emblemático intelectual sergipano, na ocasião em que celebramos o centenário do seu nascimento.    

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

BERGER, Maria Lúcia Souza Ramos. A educação de adultos numa experiência de reforma agrária: o caso da Promoção do Homem do Campo de Sergipe – PRHOCASE. João Pessoa, 248f. Dissertação (Mestrado em Educação), UFPB, 1982.

 

 

COSTA, Carmem Machado (et.  al.). Memórias de uma fraternidade cristã: a JUC e o Padre Luciano Duarte. Aracaju: EDISE, 2014.

 

FREITAS, Anamaria Gonçalves Bueno de. Dom Luciano Cabral Duarte e suas contribuições para o campo educacional. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Vol. 1, nº 45. Aracaju, 2015.

 

LIMA, Fernanda Maria Vieira de Andrade. Contribuições de Dom Luciano José Cabral Duarte ao Ensino Superior Sergipano (1950-1968). São Cristóvão - SE 119f. Dissertação (Mestrado em Educação). UFS, 2009.

 

MEDINA, Ana Maria Fonseca. Dom Luciano José Cabral Duarte. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Vol. 1, nº 45. Aracaju, 2015.

 

___________. Tributo Cultural de Dom Luciano Duarte. Conferência proferida na Academia Sergipana de Letras em 27 de janeiro de 2025.

 

MORAIS, Gizelda. D.  Luciano José Cabral Duarte: relato biográfico. Aracaju:  J.  Andrade, 2008.

 

NUNES, Martha Suzana Cabral. O Ginásio de Aplicação da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe (1959-1968). São Cristóvão - SE, 140f. Dissertação (Mestrado em Educação), UFS, 2008.

 

OLIVEIRA, João Paulo Gama. “Lutando com as mãos vazias, certos das nossas certezas”: Luciano Duarte e a Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Vol. 1, nº 45. Aracaju, 2015.

 

SANTOS, Gilvan Rodrigues. Dom Luciano Duarte: nem hagiografia, nem demonografia.

Jornal da Cidade. Aracaju, 29 de abril de 2011.

 

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. “O Bispo da Terra” e as agruras dos camponeses de Dom Luciano: escrita biográfica e reinvenção de si. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IX, n. 26, Setembro/Dezembro de 2016 – ISSN 1983 – 2850. p. 101-126.

 


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