José Anderson
Nascimento*
Jorge Carvalho do
Nascimento**
Qualquer
processo efetivamente vivido comporta distintas leituras pelos que se dispõem a
analisar as evidências que se apresentam para explicá-lo. Quando tais processos
são prescrutados pelos historiadores, a deusa Clio acolhe distintas versões,
desde que construídas a partir de evidências que busquem demonstrar as
conclusões às quais chega o observador.
Historiadores
como Roger Chartier e outros intelectuais filiados a diferentes gerações de
estudiosos da chamada História Cultural foram sempre pródigos em demonstrar
como todos os processos permitem não apenas que a eles se lancem diferentes
olhares e, também que estes sejam permanentemente revistos.
Neste
texto, tomamos o conhecido episódio da revolta do Treze de Julho de 1924 para
analisar como a revolta ocorrida em Sergipe sob o contexto brasileiro do
Tenentismo comporta distintas leituras que levam a conclusões que muitas vezes
estão em posições que se contrapõem.
O
HEROISMO DOS TENENTES
Quando
se discute a revolta do Treze de Julho em Sergipe, a versão mais aceita é
aquela que alinha os tenentes que depuseram o Presidente de Sergipe, Maurício
Graccho Cardoso, à condição de heróis da pátria que se insurgiram contra as
mazelas da chamada República Velha, buscando modernizar o Brasil e coloca-lo pari-passu
com os mais importantes avanços das democracias que prosperavam em diferentes
lugares do mundo9 nas primeiras décadas do século XX.
Os
tenentes sergipanos estavam articulados com a revolta dos tenentes paulistas,
iniciada em 5 de julho de 1924, sob o comando do General Isidoro Dias Lima,
contra o governo do Presidente da República Dr. Artur da Silva Bernardes, que
enfrentava uma grande crise econômica, concentrando o poder em mãos de
políticos de São Paulo e de Minas Gerais, com denúncias de corrupção e de violação
de princípios democráticos.
O
general Isidoro muito influenciou os militares sergipanos, que, em sua adesão,
sediciaram o 28º Batalhão de Caçadores na madrugada do dia 13 de julho daquele
ano, ocuparam o Palácio do Governo, prendendo e depondo o Presidente (Governador)
Maurício Graco Cardoso e alguns dos seus auxiliares, dentre eles o Chefe de
Polícia, Dr. Cyro Cordeiro de Farias, o Secretário Geral do Governo, Dr. Hunald
Santaflor Cardoso, o Consultor Geral do Estado, Dr. Carlos Alberto Rolla, entre
outros.
Os
insurgentes, estando à frente o Capitão Eurípedes Esteves de Lima e os Tenentes
Augusto Maynard Gomes, João Soarino de Melo e Manoel Messias de Mendonça,
ocuparam também a estação telegráfica, a estação da Ferrovia Leste Brasileiro,
que era localizada entre os atuais mercados Maria Virgínia Leite Franco e Tales
Ferraz e o Quartel da Polícia Militar.
A
tropa sediciosa marchou para a Praia Formosa e lá foram cavadas trincheiras até
a Ponta do Claudiano, estacionando na margem direita do Rio Sergipe os canhões “Sergipe”
e “União Faz a Força” e uma “Metralhadora” alemã da Primeira Guerra Mundial.
Minaram a barra do mesmo rio e fizeram barricadas com sacos de areia, preparando
a defesa, acaso as tropas federais viessem pelo mar.
Sempre
disparavam tiros de canhão, para animar a tropa e alertar a população. A Junta Governativa
Militar composta pelos seus principais líderes, o Capitão Eurípedes Esteves de
Lima e os Tenentes Augusto Maynard Gomes, João Soarino de Melo e Manoel Messias
de Mendonça, preocupou-se com o cerco de Aracaju e destacou revoltosos para São
Cristóvão e Itaporanga d’Ajuda.
Em
Rosário do Catete a defesa dos revoltosos ficou a cargo do exator Antônio
Garcia Sobrinho e do advogado Zaqueu Brandão, que comandaram a guarnição com o
canhão da Guerra da Independência, que foi colocado no vagão para transportar
equipamentos do trem Maria Fumaça da Ferrovia Leste Brasileiro. Esse grupamento
foi o responsável pela debandada do Batalhão Hercílio Britto, formado às
pressas com homiziados, cangaceiros e outros indivíduos do Baixo São Francisco,
que vinham em socorro do presidente do estado, que se achava preso no Quartel
do 28º BC.
Quando
este batalhão se aproximava de Carmópolis, foi surpreendido com o estampido do
tiro do velho canhão, disparado por Zaqueu Brandão, pondo-se em fuga a
cavalaria e os infantes a pé, às carreiras, pelas matas e brejos, até alcançarem
Propriá e dispersarem-se.
Das
bandas de Simão Dias partira em defesa do Dr. Graco Cardoso, uma coluna
denominada de Batalhão Barão de Santa Rosa, comandada pelo Coronel Pedro Freire
de Carvalho, que desistiu da empreitada antes de chegar em Salgado,
dispersando-se em direção do sertão.
Apesar
dessas debandadas, em que os revoltosos contabilizavam vitórias, a situação no
Sul do Estado não era favorável aos insurgentes, pois trazidos pelos navios Iris,
Canavieiras, Comandante Miranda e Marau, apoiados pelo contratorpedeiro Alagoas,
desembarcaram no Crasto, em Santa Luzia do Itanhy, mais de mil soldados provenientes
dos 20º, 21º e 22º Batalhões de Caçadores, aquartelados em Maceió, Recife e
João Pessoa, respectivamente, além de militares das polícias da Bahia e de Alagoas,
todos comandados pelo General Marçal Nonato de Farias, rumando a pé, pelos charcos,
mangues e alagados, rumo à Estância, onde foi fixado o Quartel General da campanha
para restabelecer a legalidade em Sergipe.
Para
essa operação de Guerra, o General Marçal Nonato de Farias contou com dois
canhões Trupp, guarnições, armamento e munições, navios, trens da Ferrovia Este
Brasileiro, barcaças, pequenas embarcações, caminhões, carros de bois e tropas
de muares.
As
estações ferroviárias de Boquim e de Salgado foram ocupadas pelos legalistas e
o Marechal Marçal de Farias estabeleceu o seu Quartel General num vagão do trem
Maria Fumaça e fez com que os insurgentes recuassem para São Cristóvão. Parte
da tropa legalista desembarcou em São Cristóvão e seguiu em demanda para Aracaju,
enfrentando os charcos palustres da Jabotiana, alcançando as tropas revoltosas pela
retaguarda, que se puseram em debandada.
Presos
os principais líderes da revolta e mais outras quinhentas pessoas, os
legalistas não conseguiram prender o Tenente Augusto Maynard, que driblou o
cerco imposto em Aracaju, fugindo para Rosário do Catete, depois para Santo
Amaro, escapando pelas matas da Fazenda Aruari, com o apoio do amigo Brasilino
de Jesus, vagando pelo interior de Sergipe e escapando para Salvador. Da Bahia partiu
para São Paulo, onde foi preso e recambiado para Aracaju em 7 de fevereiro de
1925.
Os
tenentes sergipanos perderam a batalha do 13 de Julho de 1924, mas como o
movimento tenentista brasileiro foram vitoriosos na guerra de propaganda e
projetaram as pautas do Tenentismo, assumindo-se como aqueles que lutaram pelo combate
à corrupção e pela propaganda do voto secreto, além da construção da Justiça
Eleitoral e da instituição do ensino público obrigatório.
Essas
pautas estavam postas de modo muito forte, desde a revolta de 1922 no Rio de
Janeiro e persistiram principalmente na Revolta de 19 de Janeiro de 1926, na qual
o Tenente Maynard, apesar de recolhido ao 28º BC, sublevou o quartel novamente,
com os mesmos companheiros de farda, capitão Eurípedes Esteves de Lima e
tenente João Soarino, partindo para o enfrentamento com as tropas da Polícia
Militar nas ruas de Aracaju.
Baleado,
o Tenente Maynard foi levado ao hospital para tratar o seu ferimento e depois
conduzido para a Ilha da Trindade, no Oceano Atlântico a 1.200 km do município
de Vitória, que se tornara em prisão militar. Para lá foram conduzidos, também,
o Capitão Eurípedes Esteves de Lima, os tenentes João Soarino de Melo, Manoel
Messias de Mendonça e mais cem insurretos sergipanos. Lá já estavam revoltosos
de outros estados, entre os quais o capitão Juarez Távora e o tenente Eduardo Gomes.
Anistiados,
os revoltosos de 13 de Julho de 1924 se articularam com outras lideranças do
movimento tenentista espalhadas pelo Brasil e lutaram focados na chamada Revolução
de 1930, inspirando, em Sergipe um programa educacional na Interventoria
Federal do General Augusto Maynard, inaugurando o Jardim de Infância, em 17 de
março de 1932, cabendo a direção dessa unidade à Professora Penélope Magalhães
dos Santos, uma entusiasta da educação infantil.
Além
disso, outras iniciativas no campo educacional foram presentes na propaganda
dos vencedores de 1930, em especial as produções científicas dos professores
José Augusto da Rocha Lima e Helvécio Andrade, publicadas no “Boletim
Pedagógico” em 13 de julho de 1934, comemorando os 10 anos da revolta dos
tenentes.
UMA
LEITURA A CONTRAPELO
No
último quartel do século XX, o historiador Edgar De Decca chamou a atenção do
Brasil para os distintos modos de ler os fatos relativos a chamada Revolução de
1930 e a ação dos tenentes em seu conhecido livro O Silêncio dos Vencidos,
demonstrando como os vencedores daquele momento sufocaram as vozes e as razões
dos que perderam o poder.
Seja
qual for a leitura que faz o estudioso da história, para todos está claro que
os Tenentes que tentaram tomar o poder em 1922, 1924 e 1926 somente foram
efetivamente vitoriosos em 1930, quando Getúlio Vargas depôs Washington Luiz e
impediu a posse de Júlio Prestes na Presidência da República.
O
triunfo da chamada revolução de 1930 permitiu que a maior parte das lideranças
tenentistas assumisse o poder ao lado de Vargas e conquistasse um dos mais
importantes dentre os troféus que a vitória política concede: o direito de
escrever a História oficial, aquela que se impõe como única verdade histórica
possível no imaginário do senso comum.
Por
isto, a leitura que mais circulou no Brasil foi a heróis de 1930 como herdeiros
do tenentismo e libertadores do Brasil que puseram fim ao conjunto de mazelas
da Primeira República. É sob tal contexto que se coloca o debate a respeito do
Tenentismo em Sergipe. Foi importante a vitória de 1930 para produzir do
capitão Eurípedes Esteves de Lima e dos tenentes Manoel Messias, João Soarino e
Augusto Maynard a imagem de heróis populares, além de mitificá-los.
A
Historiografia brasileira é pródiga na associação entre os tenentes e as
camadas médias urbanas, cuidando sempre de apresenta-los na condição de
defensores da honra militar e moralizadores do sistema político. Este tema
esteve presente no discurso militar sobre o poder, ao lado de uma outra
desgastada fala sobre o inimigo de sempre: os comunistas.
Marcantes
são momentos de tensão, como 1889, 1922, 1924, 1926, 1930, 1964 e 2018. Em tais
momentos, o Exército não pensava e não agia uniformemente. Sempre havia vozes
discordantes na caserna, mesmo quando tais vozes não eram ouvidas inicialmente,
ou quando algumas delas mudavam de posição a posteriori. No caso de Sergipe, os
tenentes que comandaram a revolta necessitaram depor e prender o comandante do
Vigésimo Oitavo Batalhão de Caçadores.
A
condição de vencedor em 1930 fez possível a Augusto Maynard receber a anistia
que lhe concedeu Getúlio Vargas, ser reincorporado às forças armadas e
promovido a capitão. Sob tal condição, ele foi interventor em Sergipe durante o
governo Vargas e, também integrou o Tribunal de Segurança Nacional. Terminou a
carreira militar como coronel e foi promovido a general de brigada quando
passou para a reserva.
É
verdadeiro que entre nós ainda são poucos os estudos que se debruçaram
verticalmente sobre o tema. O mais importante deles continua a ser o competente
e clássico livro do cientista político e historiador José Ibarê da Costa
Dantas, O Tenentismo em Sergipe. Antes do estudo de Ibarê Dantas, somente era
possível consultar os registros resultantes das pesquisas realizadas por Pires
Wynne e por Mário Cabral.
Alguns
trabalhos produzidos nestas duas primeiras décadas do século XXI estão
apresentando elementos que tornam possível estabelecer novas leituras de
movimentos como o da revolta dos Tenentes do dia 13 de Julho de 1924 em
Sergipe.
É
importante sublinhar que em nenhum daqueles momentos os militares foram os
únicos e exclusivos conspiradores. Falando em nome de combater a política,
sempre apresentada como o pecaminoso campo no qual se expressam do pior modo os
desmandos da condição humana, os militares estavam aliançados com distintos
agrupamentos políticos da sociedade civil e de outros tantos encastelados no
aparelho de Estado. Todos, políticos, aqui entendida a política como espaço de
representação de interesses da sociedade.
Dentre
os estudos nos quais encontramos elementos que possibilitam lançar um olhar
diferenciado sobre a revolta dos tenentes sergipanos, cito o trabalho da
pesquisadora Andrezza Maynard, A Caserna em Polvorosa: A Revolta de 1924 em
Sergipe. O livro, publicado pela Editora da Universidade Federal de Sergipe,
contém o texto da sua dissertação de mestrado, defendida sob o mesmo título em
2008 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Pernambuco, com orientação da Profa. Dra. Sílvia Cortez Silva.
Desde
que Walter Benjamin afirmou que “A história deve ser escovada a contrapelo”
ficaram abertas inúmeras possibilidades reflexivas acerca de dadas verdades
históricas comumente aceitas. O filósofo e sociólogo alemão ligado ao movimento
da chamada Escola de Frankfurt enunciou este seu entendimento ao publicar em
1940 as suas Teses Sobre o Conceito de História.
Benjamin
fez este enunciado ao discorrer sobre a sua Tese VII, na qual apresentou muitos
elementos fortes, portadores de uma elevada iconoclastia e de uma concepção
alternativa a respeito da cultura, dizendo: “O momento destruidor: demolição da
história universal, eliminação do elemento épico, nenhuma identificação com o
vencedor. A história deve ser escovada a contrapelo”.
Este
modo de olhar a História vinha se afirmando tanto por intelectuais ligados a
Escola de Frankfurt, na Alemanha, quanto por estudiosos da Escola dos Analles,
na França. Em diferentes espaços geográficos, pesquisadores começavam a esboçar
interpretações da História que assumiam posições diferenciadas, o que ganhou
muita clareza a partir da metade do século XX, na Inglaterra, nos Estados
Unidos da América e no Canadá. Assim é importante referenciar estudos como os
realizados por Norbert Elias, em Estabelecidos e Outsiders, Edward
Thompson, Eric Hobsbawm, Raymond Williams e Natalie Zemon Davis, apenas para
citar os mais conhecidos.
Se
Maurício Graccho Cardoso foi momentaneamente vencido e ao mesmo tempo vencedor
em 1924, a partir de 1930 ele amargou a condição de outsider. Ficou à
margem da História até o início do processo de redemocratização em 1945. Foram 15
anos sem voz.
Não
é possível retirar os méritos das inovações que Augusto Maynard trouxe à
administração pública em Sergipe. Todavia, não pesava no momento da revolta do
13 de Julho sobre Maurício Graccho Cardoso nenhuma acusação consistente capaz
de compromete-lo como gestor.
O
próprio Maynard lhe ofereceu a oportunidade de aderir aos golpistas e
permanecer no governo. A prisão de Graccho Cardoso ocorreu em face da negativa
de adesão. Não havia nada no programa dos revoltosos que fosse acréscimo ao
projeto que Cardoso vinha implementando com sucesso na condição de presidente
do Estado de Sergipe. A única e honrosa exceção é a do Jardim de Infância
público já citado neste texto.
Empossado
no Poder Executivo em 24 de outubro de 1922, Graccho construiu a imagem de
realizador e muito competente. Criou
vários grupos escolares, instalados em edifícios suntuosos que eram chamados de
palácios do saber. Construiu o edifício-sede da Prefeitura de Aracaju, na praça
Olympio Campos, e o edifício do Atheneu Pedro II, na avenida Ivo do Prado, onde
atualmente funciona o Museu da Gente Sergipana.
Maurício Graccho Cardoso foi responsável pela
obra do Mercado de Aracaju em parceria com o empresário Antônio Franco. Também
foi por sua iniciativa a construção do edifício da Associação Comercial de
Sergipe, da sede do Colégio Nossa Senhora de Lourdes e do Hospital Cirurgia,
este ao lado do médico Augusto César Leite. Ainda fundou as faculdades de
Farmácia Aníbal Freire da Fonseca e a de Direito Tobias Barreto.
Graccho criou o Instituto de Química de
Sergipe, atual Instituto de Tecnologia e Pesquisas – ITPS, onde instalou um
curso superior de Química liderado pelo reconhecido engenheiro civil e químico
Archimedes Pereira Guimarães, que mandou buscar na Faculdade de Química da
Bahia, além de criar o Instituto Parreiras Horta. Como presidente de Estado instalou
a Usina de Energia Elétrica de Sergipe.
Afastado do poder no dia 14 de Julho de 1924,
Maurício Graccho Cardoso permaneceu preso no quartel do 28 BC. Somente
retomaria o seu posto de Presidente do Estado no dia quatro de agosto do mesmo
ano, depois que os tenentes revoltosos foram vencidos, dois dias antes.
COMENTÁRIO FINAL
Qual a versão correta? Nos diferentes olhares
aqui expostos há evidências que fazem todos eles verdadeiros. O inglês Edward
Thompson nos ensinou que aquele que se lança aos arquivos, que vasculha os
registros memorialísticos, inevitavelmente faz seleções. Seleciona as
evidências que dão sentido ao discurso que articula, Por tudo isto, a História
é uma construção discursiva permanentemente em mudança. Pesquisar sempre é uma
responsabilidade que se impõe a todos nós.
*Presidente da Academia Sergipana de Letras.
**Presidente da Academia Sergipana de Educação.
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