Jorge
Carvalho do Nascimento
Havia
um grande relógio de mesa na sala de estar, em um bonito móvel escuro, cheio de
gavetas e com os pés torneados. Se me perguntarem qual era a madeira, eu não
saberei responder. Acho que era uma madeira de lei, como se costumava chamar
aquelas mais nobres, com as quais eram fabricadas as peças mais caras e mais
bonitas do mobiliário doméstico.
O
relógio, em sua caixa de madeira escura com detalhes claros em marchetaria,
também era vistoso. Movido a corda, o seu painel exibia um vidro redondo e
muito transparente que permitia a bonita visão de um mostrador dourado, liso e brilhante,
redondo, com grandes algarismos romanos incrustados em preto. Os ponteiros eram
de um metal fosco em cor cinza. O conjunto era belo.
O
mostrador daquele relógio era uma espécie de “Olho de Tandera” que feria a
minha retina, como se fosse capaz de ler a minha alma e prescrutar os meus mais
recônditos pensamentos, inclusive os inconfessáveis a um menino que começava a
viver a plenitude da puberdade e o fervilhar dos hormônios.
A
noite da sexta-feira da paixão era assustadora. O dia fora muito comprido. A
manhã e tarde se arrastaram sem nenhuma pressa. O tic-tac ritmado do relógio
que compassadamente marcava cada segundo me atormentava. A cada 30 minutos uma
badalada suave. A cada hora cheia tantas badaladas fortes quantas fossem
necessárias para registrar a hora na qual se havia chegado.
Eu
ansiava pela meia noite. Era o fim do sofrimento da paixão. A minha Vovó
Petrina era uma católica, carola, muito conservadora, com mentalidade
ultramontana. Ela não concordava com as decisões do Concílio Vaticano II que,
em 1964, autorizou a celebração da missa em língua portuguesa, com o sacerdote
de costas para o altar. Para ela, isto era um sacrilégio. Por isto, Vovó
Petrina ficou indignada em abril de 1969, quando o Papa Paulo VI promulgou a
nova edição do Missal Romano, com a missa rezada no idioma nacional. Nunca mais
missa em Latim, a não ser em Roma.
O
ultramontanismo de Vovó Petrina se exacerbava durante a quaresma. A partir da
quarta-feira de cinzas, na dieta de todas as quintas e sextas-feiras não era permitido
o consumo de carne de animais de quatro patas. Do mesmo modo, a carne das aves
também era proibida. Proteína, somente frutos do mar.
Eu
amava as moquecas que eram postas à mesa, as fritadas de caranguejo, de siri,
de aratu, de sururu. Moquecas de robalo, de cação, de arraia, de camarão, bem
temperadas com leite de coco e azeite dendê. Uma delícia. Era uma espécie de
sacralização da “Festa de Babete”. E as farofas de manteiga que acompanhavam os
frutos do mar faziam um espetáculo à parte. Eu vivia me refestelando com tais
iguarias.
O
problema na casa de Vovó Petrina era a sexta-feira da paixão. Ela e os outros
dois moradores da casa (eu e a Tia Terezinha) se obrigavam a guardar o luto próprio
àquele dia. Acordávamos e já encontrávamos todos os espelhos da casa cobertos
com lençóis brancos. Era o modo que Vovó Petrina encontrava para impedir que qualquer
um de nós cultivasse algum laivo de vaidade ao se mirar e ver a própria imagem
refletida nos espelhos.
Da
mesma maneira, era um dia no qual estávamos proibidos de pentear os cabelos e
tomar banho. Escovávamos os dentes e sentávamos ao redor da mesa das refeições
para rezar o terço em família. Ligar o rádio, ligar a TV eram práticas
terminantemente proibidas. Nada de se alegrar nem fazer barulho.
Dentre
os compromissos da contrição estava o do voto de silêncio. Naquele dia, todos permanecíamos
calados. Contudo, o pior daquele sofrimento era o jejum. A partir da meia noite
da quinta-feira somente era permitido o consumo de água. Não se acendia o fogo
e não se consumia nenhum tipo de alimento na casa.
As
portas e as janelas permaneciam fechadas. Varrer a casa também era proibido. E
cada um de nós ficava o dia inteiro sentado em uma poltrona com um catecismo,
um exemplar do velho ou do novo testamento ou mesmo da Bíblia nas mãos, com o
coração e a mente voltados para o sofrimento de Jesus Cristo, buscando
compreender como o filho de Deus se deixou imolar em nome da nossa salvação
para a vida eterna.
Para
o menino de onze anos que eu era, a maior alegria era o final daquele dia
comprido, no qual o único som que eu ouvia era o tic-tac do grande relógio de mesa
que pacientemente pendulava cada segundo. Chegar ao sábado era uma espécie de
libertação do sofrimento.
Mal
encerrada a sexta-feira, a primeira providência era tomar um bom banho. Claro
que havia uma ordem de precedência dada pela importância social de cada um na
casa, onde só havia um banheiro: primeiro, Vovó Petrina. Eu era o último,
depois que a Tia Terezinha liberava o quarto de banho.
Após
a higiene corpórea, um bom lanche. Beijus, queijos, leite, bolo, ovos fritos e
laranja lima ao modo de sobremesa. Hora de dormir, com o estômago bem forrado. Depois
de acordar no sábado de aleluia, o estômago seria premiado com café da manhã,
lanches, almoço e jantar nababescos.
Amo as histórias de Vovó Petrina
ResponderExcluirLinda história.
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