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WAS IST DAS?


 

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

“Entschuldigen Sie bitte”. Little Dê virou-se para mim assustada e perguntou: “meu pai, que fiz para receber esta grosseria? Eu estava parada. Quem esbarrou em mim foi ele”. Imediatamente expliquei a ela que a expressão pronunciada em voz tonitroante à porta do trem do metrô por um alemão ruivo que media dois metros de altura por quase dois de largura era um pedido de desculpas, justamente pelo esbarrão.

Ela, aos 12 anos de idade e vivendo os sabores do primeiro dia da sua primeira viagem ao exterior, acabara de ser apresentada aos mistérios fonéticos da língua dos germânicos. Limitou-se a exclamar, interrogando: “Virgem! E isto é um pedido de desculpas?” Li, minha outra filha, então com 13 anos, assistia a cena atônita e em silêncio.

Ambas desembarcaram na tarde anterior no aeroporto de Frankfurt, onde eu as aguardava. Elas foram passar as férias escolares comigo. Estava fazendo meu estágio de pesquisa como bolsista de doutorado no Fachbereich Erziehungswissenschaften Institut für Allgemeine Erziehungswissenschaft in der Dritten Welt, ou, simplificadamente em bom Português, no Departamento de Ciências da Educação do Instituto de Ciências da Educação Geral do Terceiro Mundo da Universidade de Frankfurt.

A impressão das meninas era a mesma que eu tivera ao cambalear dando os passos iniciais na tentativa de aprender a rica língua de Johann Wolfgang von Goethe. Até hoje continuo com a impressão de que nunca consegui me distanciar dessas primeiras caminhadas, embora haja me apaixonado por aquele idioma.

Heinrich, meu primeiro professor nos mistérios da língua alemã, sempre carregada de declinações, afirmava toda vez que eu reclamava da inacessibilidade da sua gramática natal: “Engraçado. Brasileiro reclama de declinações, como se a Gramática da Língua Portuguesa fosse um manual de uso simplificado”.

Até amansar os rudimentos da leitura e da escrita, da fonética e dos usos das declinações gramaticais, sofri muito. Cometi erros grosseiros (o que não quer dizer que agora não mais os cometa) e algumas vezes vivi situações embaraçosas, em face do péssimo uso da língua.

No meu primeiro dia em Frankfurt desembarquei no aeroporto e necessitava tomar um trem até o centro da cidade. Ensaiei mentalmente a frase que diria para perguntar ao guarda da estrada de ferro em qual plataforma deveria me postar para aguardar o trem que me conduziria até a Hauptbanhoff, a estação do centro da cidade. Quando pedi a informação, o guarda me fitou com aquele jeito de quem viu um extra terrestre e indagou: o senhor pode perguntar em Inglês. Foi o que eu fiz e fui prontamente atendido.

Uma semana depois, instalado em meu apartamento na Beethovenstrasse 36, no bairro Westend, fui a padaria no final da tarde comprar pão. Volkornbrot, um pão integral preto, pesado e saboroso. Na volta, desabotoou o cadarço do meu tênis. Nada melhor que um bonito e convidativo muro branco da residência pela qual eu estava passando. Pus o pé no muro e estava terminando de dar o laço no tênis.

Ouvi uma daquelas vozes assustadoras e tonitroantes próprias a chamada língua dos filósofos. Ausweis, ordenava o policial imperativamente, mesmo em trajes civis, determinando que eu apresentasse os meus documentos, a minha identificação. Bati a mão nos bolsos. Para minha desgraça saíra de casa sem passaporte ou qualquer outro papel comprobatório de que eu era eu.

Tentei me explicar. Não sei se pela minha dificuldade com o idioma ou pela minha cara de cidadão do mundo árabe o policial não se convencia de que eu era um cidadão brasileiro, professor universitário, bolsista pesquisando na Universidade de Frankfurt. Colocou a mão no seu bolso traseiro, sacou um radiocomunicador e em menos de cinco minutos parou ao nosso lado uma viatura verde com aquela inscrição em letras garrafais: POLIZEI – a temida polícia alemã.

Não tive como recusar o gentil convite do tenente que veio com a viatura policial, elegantemente uniformizado, para que eu o acompanhasse até a delegacia. Entre as 17 e as 19:30 horas eles me vasculharam em todos os computadores alemães. Somente quando lembrei de memória o numero do telefone residencial do meu orientador, eles fizeram um telefonema e a situação se esclareceu.

Me levaram até a porta da minha casa. Ficaram na calçada. Eu entrei, peguei o passaporte e os documentos da minha matricula na Universidade. Perguntei: Was Ist Das? Queria saber o que aconteceu. O tenente me advertiu:

1 – estrangeiro nunca sai sem documentos;

2 – evite amarrar o cadarço do seu tênis naquele muro. É a residência de uma importante personalidade judaica que legalmente recebe proteção das forças de segurança alemãs.      

 

 

Jornalista Profissional, Doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e Presidente da Academia Sergipana de Educação.

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