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A REDESCOBERTA DOS LIVROS DA BIBLIOTECA DE SÍLVIO ROMERO III




 
 
Prof. Dr. Jorge Carvalho do Nascimento*
 
 
O trabalho mais antigo dentre os que integram o acervo de Sílvio Romero (foto) foi publicado em 1802. Os mais recentes são dois livros adquiridos em 1914, ano da sua morte. Nesse intervalo de tempo que vai de 1802 a 1914, o ano em relação ao qual existe a maior quantidade de registros de livros publicados é o de 1911 – 13 trabalhos. No acervo, todavia há pelo menos uma ausência digna de registro. Trata-se do livro do fisiologista e reitor da Universidade de Berlim, Du Bois-Reymond, publicado em 1867 sob o título L’enseignement au point de vie national. O texto do intelectual alemão tomara como base uma conferência que este fizera sob o título de “História da civilização e da ciência”. Nele o autor brasileiro localizou os argumentos teóricos que esgrimiu no seu mais importante trabalho a respeito da educação “Notas sobre o ensino público”.
Jackson da Silva Lima catalogou as marcas e anotações deixadas pelo leitor Sílvio Romero nos livros por ele manuseados. “Sílvio Romero tinha por hábito anteceder as suas anotações manuscritas com sinal de mais [+] ou de igualdade [=] e com estrela ou asterisco [*], bem como de sublinhar trechos com traços (simples ou duplos) verticais nas margens da mancha tipográfica e horizontais na parte superior e no rodapé”. A partir dessas marcas é possível tomar os livros da Biblioteca de Sílvio Romero e resgatar alguns diálogos que este manteve com os autores que leu, de modo a penetrar no seu universo mental, expresso sob a forma das ideias que deixou escritas e das observações, concordâncias, discordâncias e críticas que estão à margem dos livros que leu. Os vestígios deixados por aquele leitor são reveladores de como ele incorporou o pensamento de outros intelectuais contemporâneos e antecedentes seus, penetrando na gênese da sua mentalidade, na sua forma de trabalhar intelectualmente, no seu processo de leitura e nas suas reflexões.
A leitura romeriana de William James é muito útil e fértil, reveladora dos modos como o Pragmatismo norte-americano foi apropriado por um dos mais importantes dentre os intelectuais brasileiros do início do século XX. Sobre James, Romero fez apenas uma rápida referência “em ‘Questões e Problemas’, prefácio datado de outubro de 1912, para o livro Novos e Velhos, de Tito Lívio de Castro, publicado no ano seguinte”. No texto, Sílvio diz que “o próprio dogmatismo intelectualista recebeu fortes repulsas das mãos de um H. Poincaré, um Mach, um W. James, um Bergson”.
O já citado Jackson da Silva Lima aponta ter sido William James o último autor lido por Romero, e como não deixou nenhum trabalho específico sobre ele, por certo, a única possibilidade de apreender o modo através do qual o pensamento do norte-americano foi incorporado e o juízo crítico que o brasileiro fez dele são as notas e marcas de leitura. Dos dois livros escritos por William James que integram a Biblioteca de Sílvio Romero, foi possível descobrir que um deles foi presenteado por Carlos Froes em dezembro de 1910, fato que está registrado em dedicatória inscrita no próprio livro. O Significado da Verdade, numa edição em francês publicada no ano de 1913 é a outra obra de James que pertenceu a Romero.
O primeiro trabalho é rico em anotações. O reduzido espaço reservado a este texto permite registrar apenas algumas delas. Na folha em branco inicial do livro, o intelectual brasileiro fez as seguintes anotações: “Tema: *Psicologia, *Filosofia da experiência, *Pragmatismo, *Variedades da Experiência religiosa, *Vontade de crer, *A significação da Verdade”. “As ideias energéticas de Mach, [autor não identificado] e Le Bom desnorteiam. As de Poincaré ainda mais. Mas as de W. James e Bergson levam-nos ao cúmulo da desordem. Faz-se mister muita calma e m[u]ito raciocínio p[ar]a tomar posição em tal batalha”.
No final do livro, também na folha em branco, pode ser lido: “Este pragmatismo tem de boa a crítica ao intelectualismo puro; e mais o valor da prática e da ação p[ar]a a origem da razão e das ideias. Desnorteia sobre o Absoluto, sobre um Deus finito, sobre o pluralismo exagerado que compromete a unidade [frase riscada], na crítica sem razão ao monismo como síntese superior idealista. É bom quando mostra a riqueza do instinto, do sentimento, da imaginação etc. Acho-o melhor na exposição do Rey e do Bérgson. Este autor argumenta como se todos os intelectualistas fossem monistas, e sectários da filosofia do Absoluto ao jeito de Hegel. Pluralismo e monismo, Intelectualismo e pragmatismo ou Filosofia da ação, Absolutismo.
O monismo pode se conciliar com o pluralismo: monismo na base, no ponto de partida, monismo no viver e no evoluir; pluralismo, nos resultados, na força e na consciência peculiar adquirida. Tenho isto no mono-duo, e mono-plural”. Quanto ao Significado da Verdade, são poucas as anotações feitas por Sílvio Romero que, ao que parece, não dispôs de saúde e tempo de vida suficiente para esgotá-lo. Há apenas duas breves anotações. A mais importante à página III: “A verdade não é senão a afirmação do ser através de ideias, assim como o bem é a afirmação do ser na ordem dos fatos”.
Há muito a dizer a respeito das notas deixadas por Sílvio Romero nos livros da sua Biblioteca. Os dois textos de William James são objeto permanente de consultas que faço. Mas, as notas de Sílvio são ricas e numerosas. É possível, através das leituras feitas por esse autor, compreender muito do processo no qual se preparava um dos mais importantes dentre os vários pontos de inflexão realizados pela educação brasileira – a incorporação do discurso que toma a Biologia, a Psicologia e, mais tarde, a Sociologia como fundamentos científicos da Educação e que, de resto, embala, no caso brasileiro o discurso a respeito da Pedagogia Moderna e, também, da Escola Nova, a respeito das reformas do ensino e, particularmente, da instrução pública.
 
*Jornalista, professor, Doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e Presidente da Academia Sergipana de Educação
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Comentários

  1. Grata pelo texto, professor Jorge. Como alguém que esteve desenvolvendo projetos de incentivo à leitura, entre 2009 e 2019, somente senti falta do registro do endereço do rico acervo de Sílvio Romero. O Estado comprou a biblioteca do escritor em 1918, mas não foi fácil a mantença até os dias atuais. Algo até compreensível, pois muitas mudanças ocorreram até a inauguração do atual prédio da Epifânio Dória, em outubro de 1974. O próprio Jackson nos contou que foi chamado para reorganizar o acervo com o saudoso Pedrinho dos Santos e entre as pilhas desarrumada de livros havia, inclusive, múmia de rato. Mais recentemente, em 2010, com a Biblioteca clamando por uma reforma, o mesmo acervo contou com a sensibilidade de diretoras que mandaram cobrir todos os livros com plástico para mantê-los a salvo das inúmeras goteiras. Em 2015, novamente por sensibilidade da direção e lamentos do Seu Pedrinho e Jackson, foi inaugurada uma sala somente para o precioso acervo. Após a esperada reforma, em junho de 2019, a Epifânio foi reinaugurada com uma sala ainda mais ampla para os acervos de Sílvio, dos irmãos Freire e de Gumecindo, com toda a catalogação sofisticada feita, a mão, pelo patrono da biblioteca.
    Quero deixar isso registrado, pois não fosse a bravura e persistência dessas pessoas, talvez, não pudéssemos mais fazer esse tipo de pesquisa.
    Por último, reafirmo a importância de quem preserva, ilustrando com um caso que poucos ficaram sabendo. Houve dirigente da Epifânio que estava descartando os livros de história, cultura e literatura de Sergipe, jogando tudo no último andar para irem ao lixo e eu, ouvindo os apelos de Seu Pedrinho, chamei um fotógrafo para registrar o fato. Na ocasião, levei uma bronca da Secult por ter permitido o registro, mas os livros ficaram e a diretora saiu. Graças ao bom Deus. Desculpa, o longo comentário. Viva, Jackson da S. Lima; viva, Sônia Carvalho; viva Juciene Santos; viva, Seu Pedrinho dos Santos!

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