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LIVROS PARA O POVO IV

 




 
                              Jorge Carvalho do Nascimento*
 
 
A Editora David Corazzi deixou de funcionar em 1889, a partir da criação da Companhia Nacional Editora de Lisboa, que também encampou na mesma oportunidade a editora Justino Guedes. Após a fusão, a Companhia Nacional Editora de Lisboa continuou publicando os volumes da Biblioteca do Povo e das Escolas, até 1902, quando foi substituída pela empresa A Editora – que também prosseguiu com a mesma coleção.
O sucesso editorial da Biblioteca do Povo e das Escolas e dos Dicionários do Povo no Brasil levou o editor David Corazzi a abrir uma filial no Rio de Janeiro, no início do ano de 1882, à rua da Quitanda, 40. A Companhia Nacional Editora manteve escritórios no Rio de Janeiro, à rua da Quitanda, 38. Já A Editora instalou os seus escritórios naquela cidade à rua São Pedro, 33. Em 1909, passou a funcionar em novo endereço, à rua do Ouvidor, 166. No mesmo ano, foram abertos os escritórios de São Paulo e Belo Horizonte. O primeiro à rua São Bento, 65. O mineiro, à rua Bahia.
A partir do ano de 1913, a comercialização da Biblioteca do Povo e das Escolas no Brasil passou a ser feita pela Livraria Francisco Alves. A colocação dos livros no mercado e a sua circulação estavam garantidas não apenas nas lojas da editora, mas também através dos correios. A editora fazia assinaturas e vendia também os livros de maneira avulsa pelos correios, desde que o interessado enviasse uma carta com a importância correspondente ao preço em estampilhas ou vales postais.
Os meus primeiros contatos com a Biblioteca do Povo e das Escolas aconteceram na cidade de Aracaju. O colecionador Luiz Antônio Barreto, meu saudoso amigo, adquiriu de um jornalista baiano, residente em Salvador, 38 exemplares da coleção. Segundo o vendedor, os livros pertenciam aos seus familiares, desde o início do século XX. Ao examiná-los, pude perceber a importância do material com o qual havia entrado em contato. Desde então iniciei minhas buscas para entender melhor aqueles livrinhos.
Recentemente, em conversa que mantive com a escritora Ana Maria Fonseca Medina ela me revelou que o seu pai, Raimundo Fonseca, mantinha na sua estante de livros, em casa, o volume CIVILIDADE, que costumava consultar frequentemente e sugerir aos filhos que fizessem a mesma leitura. Raimundo Fonseca foi o maior produtos de laranjas do Estado de Sergipe, durante a segunda metade do século XX. Reside numa casa confortável em uma das suas fazendas. Adquiriu vários livros da Biblioteca do Povo e das Escolas quando foi estudante, em Salvador, no Estado da Bahia, durante a primeira metade do século XX.   
No ano de 1997, em Portugal, recebi a ajuda do Prof. Dr. Pedro Calafate, pesquisador da área de História da Cultura da Universidade de Lisboa. Percorrendo alfarrabistas, foi possível recuperar 24 das 29 séries que constituem a coleção. Depois que levantei as primeiras informações, e fiz um necessário estudo inicial exploratório, comecei a trabalhar com os livros do ponto de vista do seu conteúdo. Com esta série de textos que retomei e venho publicando sobre o assunto pretendo apenas divulgar uma notícia acerca da coleção e do seu significado.
A Biblioteca do Povo e das Escolas se propunha a ser “propaganda de instrução para portugueses e brasileiros” – como aparecia no frontispício de cada um dos volumes -, uma vez que seus editores entendiam haver “na sociedade moderna uma incontestável tendência para a vulgarização dos conhecimentos humanos em todos os seus ramos variadíssimos” O propósito da coleção era claramente iluminista e o seu caráter eminentemente enciclopédico: “A Biblioteca do Povo e das Escolas vem acudir a uma falta que já, desde tempos, outros países tais como a Inglaterra, a França, a Itália, a Alemanha e os Estados Unidos têm tratado de remediar dando a público, por módico preço, coleções no gênero da que ora sai a lume”.
O editor dava à série de livros a natureza de um empreendimento civilizador que buscava inocular gradualmente o espírito das pessoas com noções indispensáveis à modernidade na transição do século XIX para o século XX. E comparava: “as suas monografias alcançarão a importância dos Manuais Roret, lidos e estudados em todo o mundo” (A Época, nº 132. Ponta Delgada, Portugal, 12 de Julho de 1884).
Indiscutivelmente, o modelo da coleção era inspirado em muitos similares que circularam desde o século XVIII em países como Inglaterra, França, Itália, Alemanha e Estados Unidos – países considerados à época como sendo a vanguarda do Estados nacionais bem organizados e dotados de padrões elevados de civilidade. A indústria era vista como uma das mais fortes características do século, enquanto a máquina a vapor era entendida como a mais importante expressão da indústria: “A máquina de vapor representa o brilhante predomínio da intelectualidade humana sobre as forças brutas da natureza inconsciente. Na máquina a vapor se consubstancia verdadeiramente a civilização do século XIX” (texto de abertura da Décima série, publicada em 1884).
O discurso civilizador valorizava a escola como sendo a agência destinada, por excelência, ao cultivo das grandes virtudes, ao fortalecimento dos espíritos, à formação do homem do futuro, o homem consciente. O homem civilizado, escolarizado, seria capaz de organizar a família em bases sólidas, simpáticas e justas, de acordo com as aspirações do progresso, em consonância com as normas científicas.
O imaginário da intelectualidade do século XIX contrapunha a inconsciência das máquinas à inteligência humana. Havia uma busca, tanto em Portugal quanto no Brasil, pelo ideário civilizador, pelo refinamento dos padrões sociais gerais. E isso impunha a necessidade de incorporação de um patamar mínimo de conhecimento que estava nos livros. Era necessário, sob todas as formas incitar ao estudo dos grupos sociais que as elites da época denominavam de classes populares.
O caráter popular da Biblioteca do Povo e das Escolas é muito transparente. “O operário, o estudante, o chefe de família ou o professor, não hesitarão em formar a sua biblioteca econômica com estes livrinhos que lhe explicam tudo quanto poderiam aprender em outros de preços elevadíssimos relativamente aos haveres da maior parte das pessoas” (Prefácio da Oitava série da coleção, publicada em 1883).
 
*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.


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