Pular para o conteúdo principal

LIVROS PARA O POVO




 
                                        Jorge Carvalho do Nascimento*
 
 
Neste período de isolamento social, revendo anotações de pesquisas, encontrei registros documentais de estudos sobre a História do livro e da leitura que desenvolvi e publiquei no ano de 1998. Resolvi voltar a refletir sobre o tema. Para isto, vou situar o meu leitor em torno das questões que coloquei naquele período.
 Publiquei na revista HORIZONTES o artigo CULTURA E EDUCAÇÃO NO BRASIL DO SÉCULO XIX: UMA RELEITURA. O texto circulou no Volume 16 do periódico (pgs. 143-185), publicado pela Editora da Universidade São Francisco, em Bragança Paulista, como firmei, em 1998. Ali, chamei a atenção para as discussões acerca da difusão dos hábitos de leitura no Brasil, ainda cheias de interpretações carregadas de preconceitos próprios a historiografia dos primeiros anos da República.
É verdade que o Estado Republicano se constituiu trazendo consigo a expectativa do novo. Mas, também é verdadeiro que levou a que se produzisse deformações nas representações históricas do regime que o antecedeu. Sob a perspectiva da historiografia republicana, a leitura no Brasil do século XIX teria sido inacessível não apenas ao povo. No livro A CULTURA OCULTADA, afirmei que “A visão corrente do Brasil monárquico dá conta da existência de determinadas circunstâncias que impossibilitavam a intelectualidade nacional daquele período pensar a respeito do próprio Estado brasileiro e formular projetos coerentes" (p. 2-3).
As tintas sombreadas utilizadas pelos historiadores da cultura para pintar o Brasil dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX consolidaram a visão de que estávamos indigentes de ciência em função das tradições que herdáramos sob a influência dos jesuítas. Divergindo desse tipo de interpretação, investigadores como Mirian Jorge WARDE nos chamaram a atenção para a necessidade de superar a perspectiva de uma “sociedade civil ainda despreparada para os valores democráticos, científicos (porque ainda marcada pelos valores colonialistas, elitistas etc) e, portanto, ainda infantil” (Liberalismo e Educação. p. 5).
O pesquisador Jorge de Souza ARAUJO afirmou que “o brasileiro, se não lia tudo ou bem, ao menos lia. E lia razoavelmente vário e muito” (O Perfil do Leitor Colonial. p. 19). As primeiras bibliotecas brasileiras começaram a ser formadas ainda em 1549, com a chegada dos primeiros missionários jesuítas. Em 1583, no Colégio da Bahia, havia já uma boa biblioteca. Este mesmo autor entendeu ainda que a partir do século XVIII, a ilustração pombalina desenvolveu e intensificou aqui uma certa pedagogia de época.
Tal processo teria inclusive desdobramentos no que concernia aos interesses do colono no campo de uma bibliografia específica. Araujo não desconheceu nessa sua análise as contradições do ambiente colonial brasileiro que, na mesma oportunidade, proibiu o editor Antonio Isidoro Fonseca de instalar-se aqui como impressor. A herança pombalina permitiu que no século XIX a política cultural da Monarquia Brasileira ancorasse ali os seus pressupostos.
No Império havia bibliotecas públicas importantes em capitais de Províncias como São Paulo, Ouro Preto, Salvador, Fortaleza, Recife e São Luiz. No Rio de Janeiro havia cerca de 13 bibliotecas importantes abertas ao público. Somente o acervo da Biblioteca Imperial chegava quase a 171 mil volumes, enquanto uma outra Biblioteca – a do Palácio de São Cristóvão – possuía 150 mil volumes. Tudo isto, sem considerar as bibliotecas que funcionavam nos conventos e colégios religiosos desde o século XVI – muitas delas abertas ao público em geral.
Foi em tal ambiente que começaram a circular revistas pedagógicas. Na análise que fez da bibliografia pedagógica brasileira no período de 1812 a 1884, Lourenço Filho (A educação e os estudos pedagógicos no Brasil. p. 5). identificou cerca de 150 títulos. “A frequência das publicações cresceu de forma significativa ao longo do século XIX, paralelamente a consolidação do movimento romântico e de outros acontecimentos próprios daqueles anos”, como apontei em meu livro já citado (p. 145). Se antes, em 1812, era publicado um livro tratando de temas pedagógicos a cada três anos e meio, setenta anos depois eram publicados seis livros especializados a cada ano.
A imprensa de educação e ensino no Brasil do século XIX foi a preocupação central dos estudos que desenvolvi em 1998. Em tal sentido é necessário sublinhar que antes dos anos 1900 já circulavam entre nós livros dedicados ao problema da educação. Sob tal perspectiva, Marina Massimi, no seu livro As origens da psicologia brasileira em obras do período colonial, apontou textos da maior importância, como o Tratado de Educação Física dos Meninos, publicado em 1790 pelo médico mineiro Francisco de Mello Franco, um entusiasta do iluminismo e do empirismo filosófico (p. 96-117).
Os textos em circulação no Brasil desde o século XVI e até o início do século XX, mesmo os de autores brasileiros, eram predominantemente produzidos em Portugal, onde a imprensa tipográfica fora introduzida desde 1487.
De acordo com Jorge de Souza Araujo, os primeiros leitores brasileiros foram os europeus, seguidos dos “filhos de colonos e os nativos” (p. 35). Não obstante a censura religiosa imposta a partir de 1564 pelo Papa Pio IV (Index Librorum Prohibitorum) e o controle imposto pelo governo português, até mesmo uma porção significativa dos livros oficialmente proibidos podia ser encontrada nas nossas bibliotecas coloniais. Durante o século XVI, lia-se Horácio e Ovídio, apesar das restrições da Igreja.
As restrições à leitura, no entanto, diferentemente do que muitos imaginam, não foram privilégio português. Os colonizadores espanhóis no México e no Peru procederam do mesmo modo que os portugueses no Brasil quanto a tal questão. Porém, tanto na colonização espanhola quanto na portuguesa, tais proibições são discutíveis, uma vez que, segundo Jorge de Souza Araujo, “os livros circularam como peça de contrabando sob as vistas complacentes de autoridades e membros da corte, estes também francos consumidores das novelas de cavalaria. Os livros, como objeto da cultura e da prática social, eram admitidos como símbolos de uma ascensão intelectual” (p. 41).
 
*Jornalista, professor, Doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e Presidente da Academia Sergipana de Educação
.


Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A MORTE E A MORTE DO MONSENHOR CARVALHO

  Jorge Carvalho do Nascimento     Os humanos costumam fugir da única certeza que a vida nos possibilita: a morte. É ela que efetivamente realiza a lógica da vida. Vivemos para morrer. O problema que se põe para todos nós diz respeito a como morrer. A minha vida, a das pessoas que eu amo, a daqueles que não gostam de mim e dos que eu não aprecio vai acabar. Morreremos. Podemos mitologizar a morte, encontrar uma vida eterna no Hades. Pouco importa se a vida espiritual nos reserva o paraíso ou o inferno. Passaremos pela putrefação da carne ou pelo processo de cremação. O resultado será o mesmo - retornar ao pó. O maior de todos os problemas é o do desembarque. Transformamo-nos em pessoas que interagem menos e gradualmente perdemos a sensibilidade dos afetos. A decadência é dolorosa para os amigos que ficam, do mesmo modo que para os velhos quando são deixados sozinhos. Isolar precocemente os velhos e enfermos é fato recorrente, próprio da fragilidade e das mazelas da socied...

O LEGADO EDUCACIONAL DE DOM LUCIANO JOSÉ CABRAL DUARTE

  Jorge Carvalho do Nascimento     A memória está depositada nas lembranças dos velhos, em registros escritos nas bibliotecas, em computadores, em residências de particulares, em empresas, no espaço urbano, no campo. Sergipe perdeu, no dia 29 de maio de 2018, um dos seus filhos de maior importância, um homem que nos legou valiosos registros de memória que dão sentido à História deste Estado durante a segunda metade do século XX. O Arcebispo Emérito de Aracaju, Dom Luciano José Cabral Duarte, cujo centenário de nascimento celebramos em 2025, foi uma das figuras que mais contribuiu com as práticas educacionais em Sergipe, sob todos os aspectos. Como todos os homens de brilho e com capacidade de liderar, despertou também muitas polêmicas em torno do seu nome. Ao longo de toda a sua vida de sacerdote e intelectual da Educação, Dom Luciano Duarte teve ao seu lado, como guardiã do seu trabalho e, também da sua memória, a expressiva figura da sua irmã, Carmen Dolores Cabral Duar...

A REVOLTA DE 13 DE JULHO, OS SEUS REFLEXOS SOCIAIS E OS MÚLTIPLOS OLHARES DA HISTÓRIA

      José Anderson Nascimento* Jorge Carvalho do Nascimento**                                                                                              Qualquer processo efetivamente vivido comporta distintas leituras pelos que se dispõem a analisar as evidências que se apresentam para explicá-lo. Quando tais processos são prescrutados pelos historiadores, a deusa Clio acolhe distintas versões, desde que construídas a partir de evidências que busquem demonstrar as conclusões às quais chega o observador. Historiadores como...