
Jorge
Carvalho do Nascimento*
Senhor
de baraço e cutelo, Tonico era proprietário de terras no agreste de Sergipe e
no sertão da Bahia e ainda ostentava uma patente de Coronel da Guarda Nacional.
Foi homem influente na política e nos negócios do sertão durante a primeira
metade do século XX. Criar boi, produzir carne e leite era o seu negócio nas
fazendas que mantinha em Frei Paulo, Carira, Jeremoabo, Cícero Dantas e Coronel
João Sá.
Traços
finos, pele alva, nariz afilado, cabeleira basta e ruiva, na mesma tonalidade
dos cabelos das espigas de milho. Sempre trajado com calças em brim da cor
caqui, camisa também de mescla, na mesma cor, com dois bolsos com tampa e
abotoados. No bolso da calça, preso por uma corrente dourada, um vistoso
relógio da prestigiada marca Patek Phillippe, demonstrada o fausto da riqueza
sob a qual vivia, embora sempre calçado em alpercatas de couro cru, conhecidas
no sertão como roló. Pendurada pelo punho, uma taca, espécie de correia com
alça de couro utilizada para espancar os animais e, algumas vezes, os homens
que ousavam lhe desobedecer. Na cintura, o parabélum era indispensável.
Ao
morrer, na década de 1960, deixou o registro de oito fazendas de gado, objeto
de cobiça, desavença, inimizades, futricas e atentados entre os seus 19 filhos,
nascidos de cinco diferentes mulheres com as quais Tonico coabitou. O fato é
que a cada uma das suas propriedades correspondia uma mulher. Sempre que Tonico
procurava para comprar e adquiria uma nova fazenda, todos diziam: Tonico tem
uma mulher nova.
Filho
de caixeiro viajante, Tonico começou a comprar e vender com pai, ainda
adolescente, e prosperou. Adquiriu a sua primeira propriedade rural e demonstrou
elevada sensibilidade para o negócio. Sabia identificar boas matrizes e comprar
bons reprodutores. Seu rebanho cresceu rapidamente. Não era dado a muitas
letras. Sabia ler e escrever com alguma dificuldade, mas nunca se enganava nos
cálculos aritméticos e administrava com proficiência a sua vida financeira.
Depois
que amealhou um bom patrimônio, entendeu que tinha já o direito a uma vida mais
mansa. Machista, como era próprio aos homens do seu tempo, descanso e
fornicação viraram os seus principais afazeres. Optou por este caminho e
interpretou ao seu modo peculiar o crescei e multiplicai da Escritura Sagrada. Com
as dificuldades de viajar entre uma fazenda e outra na primeira metade do
século XX, Tonico estabeleceu uma rotina. Ficava um mês em cada fazenda,
recebendo os mimos da amada da vez e se derretendo nas práticas das quais se
orgulhavam os machos daquele período.
Bento,
seu vaqueiro e guarda-costas de confiança, o acompanhava em todas as andanças
pelas oito propriedades. Tonico costumava acordar por volta das quatro da manhã.
Era despertado pela mulher com a qual dormira naquela noite e sempre cobrava
tal compromisso. Quando ele abria a
porta da casa grande, lá estava Bento montado no seu cavalo e com a montaria do
patrão devidamente preparada com todos os arreios. Tonico montava a cavalo e na
companhia de Bento ia até o curral da Fazenda Santa Genoveva.
Era
a propriedade na qual ele permanecia a maior parte do tempo e voltava mais
vezes. Genoveva fora das oito mulheres aquela com a qual mais teve afeição. A
que lhe dera dois filhos, ambos vivendo em Salvador, na Bahia. Edson, o
primogênito, fazendo o curso de Medicina, e Antonieta, matriculada na Faculdade
de Direito.
Ao
retornar do curral, por volta das cinco da manhã, deitava em uma rede na
varanda e cochilava. Algumas vezes dormia profundamente, tal era a sonoridade
do ronco. Genoveva, que também acordara as quatro da madrugada já havia ralado
todas as espigas de milho. Já era possível sentir o cheiro do cuscuz que
cozinhava ao crepitar da lenha no fogão de tijolo e barro.
Cuscuz
pronto, leite fervido, os pães aquecidos, uma dúzia de ovos estrelados na
manteiga, carne do sol passada na frigideira, macaxeira cozida ao ponto de
desmanchar na boca. Tudo posto à mesa. A cadeira da direita reservada a
Genoveva e a da esquerda era o local destinado a Bento. Ao centro, o chefe.
Cabia
a Genoveva ir até a rede onde Tonico dormia. Com delicadeza e falando baixo
para não assustar a fera, ela dizia com voz suave e mansa. “Seu Tonico, senhor
meu esposo, o café está servido. O senhor deseja fazer sua refeição agora?”
Tonico levantava da rede, dava três palmadas na pança e exclamava: “Esta
propriedade ainda vai me matar de tanto trabalho. Tudo pra lhe dar vida boa e
manter esses meninos estudando e passeando em Salvador”.
Sentado
à cabeceira da mesa, Tonico recebia das mãos de Genoveva o prato com cuscuz de
milho verde. O cuscuz fumegava de tão quente. A iguaria devidamente umedecida
com leite, coberta com manteiga em abundância e uma caneca de ágata cheia de
café quase fervendo, com ele gostava. O café deveria chegar às suas mãos
devidamente adocicado com bastante açúcar. Tonico era o primeiro a comer. Somente
depois que ele começasse a fazer sua refeição, Genoveva e Bento estariam
autorizados a se servir.
Faltava
um único detalhe para concluir a obra prima da manifestação machista. A
primeira coisa que Tonico levava à boca era a caneca de ágata cheia de café
quente. Sorvia o primeiro gole com muita disposição, sugando o líquido e produzindo
um ruído característico, um silvo, nem sempre dos mais educados.
Invariavelmente a quantidade de açúcar que Genoveva colocara no café não era do
seu agrado. Isto o irritava. Cuspia tudo que havia acabado de colocar na boca e
gritava aos brados: “Ainda mato esta mulher. Me dá a maior despesa. Nem pra
fazer um café ela serve. SERPENTE PREGUIÇOSA!”.
*Jornalista,
professor, Doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e
presidente da Academia Sergipana de Educação.
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