Jorge
Carvalho do Nascimento*
A
inteligência e a argúcia sempre foram as armas com as quais Manezinho de Gerusa
se defendia das marcas da pobreza e da perversidade social que marcaram a sua
infância na Vila Segredo, onde foi criado. Uma fileira insalubre de quartos que
serviam de moradia às mulheres que ganhavam o pão vendendo a carne do próprio
corpo nos lupanares do centro da próspera cidade alagoana de Arapiraca.
À
época, dominada pela imponente elite que fazia prósperos negócios cultivando e
vendendo tabaco, Arapiraca teve o seu tempo áureo num período no qual ninguém
questionava a rica indústria do fumo que servia a produção de cigarros e
charutos e também ao processamento de tabaco para cachimbos.
Criado
pela mãe, Gerusa, Manezinho nunca conheceu o pai, mas foi batizado com o pomposo nome de Manuel Antônio
Azevedo Lima, os mesmos sobrenomes que ornavam a certidão de nascimento da sua
genitora. Infância difícil, fazendo pequenos carregos nas ruas, engraxando
sapatos, guardando e lavando automóveis dos ricos para amealhar alguns trocados
que ajudavam a complementar a renda obtida pela mãe no negócio da prostituição.
Raquítico
na infância, pernas finas, barriga d’água, pés no chão, cabelo cortado no
modelo Príncipe Danilo, calção e camisa de mescla, olhos sempre remelados, marcas características da pobreza.
Assim andou Manezinho como criança e adolescente nas ruas centrais da próspera
urbe. Sua mãe lhe vendia o sonho de sair daquele meio. Ele comprava o sonho. Gerusa conseguiu
para o pimpolho uma vaga no Grupo Escolar Adriano Jorge, onde ele concluiu o
ensino primário. Em seguida, sua mãe recebeu ajuda do Cônego Teófanes Augusto
de Araújo Barros e lhe conseguiu uma matricula no Ginásio Nossa Senhora do Bom
Conselho, ligado a rede da Campanha Nacional de Educandários Gratuitos – CNEG.
Em
1970, deixou Arapiraca para trás. Virou aluno interno do Colégio Agrícola
de Satuba, vizinho a Maceió. Estava ascendendo socialmente e deixou de morar no
ambiente que o fazia se sentir desconfortável e constrangido em meio a
prostituição que o cercava. Três anos
depois recebeu o diploma de Técnico Agrícola, começou a trabalhar exercendo a
sua nova profissão. Bem remunerado, comprou o seu primeiro automóvel, um fusca
de cor azul, com quatro anos de fabricação. Bom filho, levou a mãe para a
capital alagoana e deu a ela uma vida de bem estar. Ela já não precisava mais trabalhar.
Como dizia Gerusa, seu filho venceu na vida.
Era
a hora de voar mais alto. Estudioso, foi aprovado no concurso vestibular da
Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Em 1977, colou grau, recebeu o diploma
de engenheiro químico e obteve um bom contrato na Petroquímica Salgema, o
grande negócio da economia alagoana na segunda metade do século XX. Com a ascensão
social, muito bem remunerado, usou um financiamento do Banco Nacional da
Habitação – BNH e adquiriu uma casa no elegante bairro do Farol, para onde
mudou com a mãe.
Agora,
nada mais o constrangia. O passado em Arapiraca era um amontoado de
reminiscências das quais não gostava de falar. Sua mãe era uma senhora
respeitável que vivia com o filho engenheiro que logo se fez maçom, rotariano,
sócio do Iate Clube e, com sua simpatia, foi aceito nas rodas mais abastadas da
sociedade alagoana.
No
curso de engenharia química nasceu a sua grande paixão. Entregou o seu afeto a
Maria Ivânia Cerqueira Mello Borges, filha de tradicional família de
empresários do comércio alagoano, no ramo de importação e exportação, principalmente de equipamentos para usinas de açúcar. Como ele,
também engenheira química empregada na mesma Petroquímica Salgema. Tudo isto
fazia com que o agora doutor Manuel Antônio Azevedo Lima buscasse se refinar
cada vez mais nos trajes, no trato com as pessoas e na conversa sempre
atualizada em temas como literatura e política. Fez matrícula num curso de
etiqueta ao lado da, por assim dizer, fina flor das moças e rapazes da melhor sociedade
da terra dos marechais.
Casamento marcado para uma sexta-feira, final de tarde da primeira semana do mês de junho
de 1979. Nos preparativos, uma surpresa agradável. Presente dos colegas de trabalho do
casal, quatro noites no recém inaugurado e elegantérrimo hotel Mediterranée Club, na
Ilha de Itaparica, na Bahia, um resort ostentando todas as estrelas que os padrões de classificação da hotelaria mundial à época eram capazes de conceber.
O
seu novo status social levou para a Catedral Metropolitana a elite da cidade de Maceió,
principalmente pelo prestígio da tradicional família da noiva. Do governador de
Alagoas ao prefeito de Maceió, passando pelas lideranças políticas e pelos
capitães de empresa, aí incluídos os diretores da Petroquímica e os usineiros.
Uma
semana antes de casar, comprou um carro novo. Uma Brasília, seu primeiro automóvel zero quilômetro, cor
bege, motor 1.600, com dupla carburação. Orgulhoso, resolveu fazer a lua de mel viajando naquele símbolo de status que era a sua bela Brasília. Na noite do casamento, se retiraram da recepção no Iate Clube. O casal dormiu na suíte do Hotel Beira Mar, em Maceió. A noite de amor tórrido fez com que eles acordassem tarde. Somente ao meio dia, os pombinhos saíram de carro, ou
melhor, a bordo da Brasília, para Aracaju. Hospedados no então refinadíssimo Hotel
Beira Mar, na praia de Atalaia, uma nova noite de festa a dois. As dez da manhã
seguinte partiram para Itaparica, na Bahia.
Na
porta do recém inaugurado Mediterranée Club, o novo rico Manezinho se deu conta que
ainda havia muito a aprender sobre o mundo dos milionários bem nascidos. Sua
Brasília zero quilômetro parecia um velho calhambeque dos prestadores de
serviço do hotel, quando Manezinho entregou as chaves ao enfatiotado manobrista
que o olhou de soslaio e com uma pitada de desdém. O manobrista era o cartão de visitas do ambiente de luxo no qual o doutor Manuel e a sua consorte estavam chegando. Trajava uma imponente casaca verde com colarinho alto, vestimenta que se estendia desde o pescoço até a altura dos joelhos. Calça de tergal azul marinho com vinco simétrico e nas laterais externas de cada uma das pernas , duas fitas verdes coladas e muito bem aplicadas. O que mais impressionava eram as duas fileiras de botões dourados enfileirados na casaca, de cima abaixo. 60 pontos dourados em cada um dos lados. Nem uma sanfona de 120 baixos possuía uma botoeira tão pomposa.
À
frente da Brasília do doutor Manuel, um Masserati Quattroporte verde, modelo
1979. Um luxo só. Olhou para trás, um Lamborghini Countach 1978. O padrão dos
outros carros ali estacionados não deixava por menos. Ferraris e outros aparentados
do mesmo naipe. Que fazia ali uma Brasília bege com dupla carburação? Ficou
chocado.
Somente
o descanso (ou cansaço, quem sabe) em fim de tarde de lua de mel na suíte do
Mediterranée poderia apagar o seu choque inicial naquele mundo de luxo e
riqueza. Mas, Manezinho continuava empenhado na missão de impressionar a bem nascida
Ivânia. Nove da noite, estava a postos, trajando um elegante blazer azul marinho,
muito bem ajustado e com ótimo caimento ao seu corpo. No bolso do blazer, bem
dobrado, um lenço branco com duas bem arrumadas pontas à mostra. Camisa lisa
clássica azul clara, cinto em couro marrom, para combinar com a cor dos
sapatos. Calça social cinza e sapatos
marrom de couro, com cadarços. Meias azul marinho. No pulso, um clássico Rolex
Yacht Master 42, em ouro branco. Impossível ostentar mais.
Ivânia, cada vez mais impressionada com o refinamento do seu marido. À mesa, de entrada, uma Lagosta Grelhada à Sauce Chien. O doutor Manuel Antônio deu a pedra de toque. Pediu uma garrafa de vinho branco francês Puligny-Montrachet. Mal sabia que ali desmoronaria o castelo de cartas do apressado refinamento. O maitre trouxe-lhe a garrafa. Muito bem trajado, num smoking, tal como impunha o manual da empresa, a sua aparência era praticamente a de um pinguim de geladeira.
Diante
do casal, girou a garrafa de um lado a outro, duas a três voltas. Sem deixar
cair o guardanapo alvo de cambraia de linho muito bem dobrado no antebraço,
retirou do bolso um saca-rolhas e abriu a garrafa com uma pressão certeira que produziu o característico ruído “pou”, demonstrando que a bebida agora poderia receber oxigênio e respirar. Entregou a rolha ao
doutor Manuel. O engenheiro ainda não havia frequentado a lição da aula de boas maneiras
na qual os homens aprendem o que fazer com uma rolha de garrafa de vinho quando
a recebem das mãos do maitre em um restaurante.
Manezinho
começou a transpirar, mesmo naquele refrigerado salão do restaurante do hotel
Mediterranée Club. O maitre, imóvel, segurava a garrafa com as duas mãos e não movia
uma única pálpebra. A mão esquerda apoiava o fundo do recipiente da apreciada bebida, enquanto a
direita sustentava a sua parte superior. Doutor Manuel, em pânico, não sabia como
proceder. Apenas segurava a rolha e olhava aquele tarugo de cortiça, sem atinar onde deveria coloca-lo. Mirava a
sua esposa, que àquela altura nada entendia da dramática cena. E, por fim, buscava
os olhos do maitre que, imóvel, não lhe enviava nenhum sinal e apenas o fitava
impaciente, como se estivesse a dizer: "não tenho todo o tempo do mundo a perder, seu parvo".
O
inconsciente de Manezinho fazia um giro no seu tempo histórico, rememorando as
suas origens e tentando refletir sobre o quanto era difícil haver ascendido
socialmente. Foram segundos que duraram séculos. O doutor Manuel percebeu ali como os códigos da elite preparam armadilhas aos novos ricos e
revelam as fragilidades de berço dos pobres. Pensativo, doutor Manuel perguntou
ao seu “grilo falante”: “onde ele quer que eu enfie esta rolha?” Antes que sua
consciência respondesse objetivamente, muito rápido achou mais confortável coloca-la no
bolso do blazer. O maitre entendeu com quem estava lidando...
*Jornalista,
doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da
Academia Sergipana de Educação.
Comentários
Postar um comentário