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BIFE A CAVALO

 


 

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Totonho. Assim era tratado pelos amigos o moreno esbelto, bem vestido, elegante e bom vivant Antônio Tavares. Muito querido, era presença certa nas bem frequentadas mesas dos bares da principal cidade ribeirinha que crescera às margens do rio São Francisco, a antiga vila de Santo Antônio do Urubu de Baixo, a cidade de Propriá. Descendente de uma família propriaense tradicional, bem posicionada do ponto de vista social e também sob a perspectiva econômica na região de todo o Baixo Rio São Francisco.

Perseguido politicamente sob a Era Vargas, foi demitido em Sergipe, pelo interventor Eronildes Ferreira de Carvalho, do cobiçado emprego público de exator. Nada mais natural que com o fim da Era Vargas, ele fosse um dos primeiros a se filiar no diretório sergipano da União Democrática Nacional, a UDN, o partido que cresceu fazendo oposição ao Partido Social Democrático, o PSD.

Com a chegada do líder udenista Leandro Maciel ao poder, em 1950, Tavares recuperou o seu emprego de exator, onde permaneceu até se transferir para o Departamento de Correios e Telégrafos, pelo qual se aposentou com um bom estipêndio no final da década de 60 do século passado.

Não quis tocar nenhum tipo de negócio, como os familiares que o antecederam. Emprego, no seu caso conceituava bem a relação que mantinha com o serviço público. Trabalho, jamais. Emprego mesmo. Trabalho, nem pensar. Durante o governo de João de Seixas Dória, em 1963, o secretário da Fazenda, Pedro Diniz Gonçalves publicou portaria determinando que Totonho deveria fiscalizar a Zona do Mercado do bairro Cidade Nova. Ao ser convocado para tomar ciência do ato, escreveu no verso da Portaria. “Ciente. Não atendo. Zona quem tem é puta”. Indignado, o secretário da Fazenda foi reclamar ao governador, conterrâneo, amigo e correligionário do atrevido Tavares. E ouviu: “Vou lotar Totonho no meu gabinete. Se ele não trabalhou quando o PSD, dos nossos adversários, mandava em tudo, imagine agora”.

Viciado em boemia, Tavares era o típico cabaretier, no estrito sentido da expressão cunhada pelos franceses. Um homem obcecado por casas noturnas, shows e os prazeres proporcionados por dançarinas e pela prostituição que sempre rondou os ambientes dos cabarés. Adorava frequentar os mais luxuosos em Aracaju e sob o pretexto de cuidar de negócios que a família mantinha na capital baiana, na última quinta-feira de cada mês embarcava no luxuoso trem Estrela do Norte, em Propriá, com destino a Salvador.

Três noites de orgia no Cabaré Tabaris, o mais famoso da capital baiana, um dos mais importantes do Brasil, bem localizado na Praça Castro Alves, início da ladeira da rua Chile. Ao desembarcar do comboio, Totonho era sempre recebido pelo motorista do seu particular amigo Sandoval, o dono do cabaré, que mandava o chofer busca-lo no seu esportivo Simca Rali de cor azul piscina. Tavares tomava um hotel nas proximidades da charmosa rua Chile e aproveitava a noitada da quinta-feira, a da sexta e a do sábado. Retornava no trem do domingo.

Essas orgias custavam uma fortuna. O Tabaris era um cabaré onde tudo tinha preços muito caros. A farra começava invariavelmente por volta das oito da noite e nunca terminava antes das cinco da manhã. E depois que os clientes iam embora, Sandoval convidava o amigo Totonho para uma festa particular final. Quatro ou cinco prostitutas mais cobiçadas dentre as que frequentavam a casa e os dois amigos. Sandoval mantinha a “galinha dos pintinhos de ouro”, um quarto situado no piso superior onde ocorria o indizível.

No início da sua carreira, a cantora Fafá de Belém fez muito sucesso com a canção Filho da Bahia, uma homenagem do compositor Walter Queiroz ao Sandoval, dono do Tabaris. “Sei beber no varandá/Foi Sandoval quem me ensinou/Ah moreno”. São versos que fazem referência a varanda que existia na “galinha dos pintinhos de ouro”.

Tavares saía dessas viagens a Salvador, exaurido fisicamente e financeiramente. O mesmo Simca Rali de Sandoval o levava a Estação Ferroviária, onde Totonho embarcava no moderno trem Estrela do Norte para regressar a Propriá. A passagem de primeira classe já estava comprada desde que saíra de Propriá. Bem vestido, com seu terno de linho branco e sua gravata escura, o vagão restaurante da primeira classe era o espaço preferido no qual fazia toda a viagem

O problema que Totonho enfrentava no regresso é que nos bolsos sobrara muito pouco dinheiro depois das despesas que tivera com bebida e mulheres no Tabaris. Por isto voltava salivando e procurando economizar. Suportava a viagem sem comer e beber bem como gostava, até Alagoinhas. Antes que o comboio ultrapasse a fronteira e chegasse a Sergipe, pedia uma média de café com leite e um pão com manteiga na chapa. A sua única refeição na longa viagem até Propriá.

Numa dessas viagens, a fome era muito grande e o dinheiro era muito pouco. Pediu o de sempre. Tomou o café com leite e comeu as duas bandas do pão com manteiga na chapa. Chegaria em Propriá com o estômago roncando. Chamou o garçom para pagar a conta. Foi informado: “aquele senhor mandou colocar a sua despesa na conta dele”. Olhou para a mesa no fundo do vagão. Sozinho, discreto, viajava o Comendador Zeca Peixoto. Industrial do setor têxtil, dono de companhia de navegação, hotel, indústria de óleo vegetal e várias propriedades rurais destinadas a criação de gado e ao plantio de arroz. O homem mais rico de todo o Baixo Rio São Francisco, exercendo liderança nas duas margens. Amigos dos Tavares de Propriá.

Tavares acenou efusivamente para o comendador, colocou a mão esquerda sobre o coração e curvou a cabeça num sinal de agradecimento. Antes que o garçom fechasse a nota, voltou-se para ele e afirmou: “ainda não encerrei o meu pedido. Vou querer cinco canecas de chope, mas é para trazer uma de cada vez, à medida que eu for pedindo. E para arrematar, um bife a cavalo bem grande, com dois ovos com gema mole”.

Propriá nunca esteve tão perto de Alagoinhas.

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.


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