Jorge
Carvalho do Nascimento*
Velhos
tempos, dias não tão belos. A autoridade do professor era absoluta e
inquestionável, mesmo nas faculdades e em meio a rebeldia do movimento
estudantil que lutava aguerrido e buscava por todos os modos resistir a
ditadura militar. A luta era contra a ditadura, mas o saber docente era
inquestionável.
O
provecto monsenhor Fernando Novaes de Alencar, titular da cadeira de Direito
Romano, expressava com perfeição a indiscutível autoridade docente quando fazia
a primeira arguição para avaliar os seus alunos do primeiro ano e indagava: “Meu
futuro doutor, como se deu a queda do Império Romano?” Antes que o noviço
estudante, nervoso e arfante articulasse a primeira palavra da sua resposta,
intervinha, soberbo: “A cátedra pergunta e a cátedra responde. Menos violenta
do que se esperava”. A nota que seria atribuída ao arguido era o de menos. O
monsenhor arbitraria e ninguém seria capaz de divergir.
Foi
este o mundo no qual João Carvalho da Silva ingressou em 1970, sob o governo Médici,
uma espécie de periélio ditatorial, tamanho era o calor da pressão exercida
sobre os direitos sociais e as liberdades democráticas.
Para
aquele jovem de 19 anos de idade tudo era festa e alegria. O concurso
vestibular para ingresso no curso de Direito da Universidade Federal de
Pernambuco, a UFPE era dificílimo. Assim, ao ver seu nome na lista de aprovados
divulgada pela Rádio Jornal do Comercio, não conteve as lágrimas, abraçado com
a professora Filomena, sua mãe, e com o marceneiro Erasmo, seu pai. Era de sete
filhos a prole do casal. Sua irmã mais velha, Matilde havia ingressado no
ensino superior, dois anos antes, aprovada para o curso de Letras. Todos se
alegraram, mas não era a mesma coisa. Seria professora, profissão de pouco prestígio
social. Agora sim, a família teria o seu primeiro doutor.
Primeiro
dia de aula. Ingressou no prédio da tradicional escola de Ciências Jurídicas e
Sociais da UFPE, fundada em 1827 como Faculdade de Direito de Olinda e Recife,
pelo Imperador Pedro I. O orgulho de estar ali matriculado como aluno fazia com
que o espelho da sua alma enxergasse a si como uma espécie de novo Ruy Barbosa,
ou quem sabe um Sobral Pinto, um Teixeira de Freitas, um Nabuco de Araújo, um Felício
dos Santos, um Coelho Rodrigues, um Tobias Barreto ou um Clóvis Bevilacqua, quem
sabe. Melhor que tudo, ali estava chegando futuro doutor João Carvalho da
Silva. Adorava a voz doce e as minissaias de Paula Toller, o que lhe remeteu ao
poema da música que ela interpretava na banda Kid Abelha e os Abóboras
Selvagens: “Depois de você, os outros são os outros. E só”.
Praticamente
não lembrava mais da pobreza familiar de origem, mesmo morando na famosa favela
do bairro dos Afogados, enclave de pobreza na zona oeste da cidade do Recife,
próximo ao centro da urbe. Luta penosa a dos seus pais para criar uma prole grande.
O marceneiro Erasmo migrou da cidade de Limoeiro, no agreste pernambucano, no
início da década de 60 do século XX e na capital do Estado conheceu a Filomena,
aluna da Escola Normal, recém chegada de São José da Coroa Grande, município do litoral sul,
fronteira com o Estado de Alagoas.
Primeiro
dia de aula. João Carvalho lutava pela sobrevivência trabalhando como office-boy
no Diário de Pernambuco. Com um dos primeiros salários fez um crediário e
comprou aquilo que considerava faze-lo elegante e estar na moda. Negro, pele
bem assentada, cabelos à moda black power, longilíneo. Envergava uma camiseta
verde, slim, deixando o umbigo à mostra, calça boca de sino com o cós baixo
(tal como gostavam os roqueiros daquele período). Indo à aula, resolveu não
calçar os sapatos modelo cavalo de aço e os substituiu por um vistoso par de tênis
da marca Kichute, na cor preta. Aquele mesmo que tinha um cadarço com quase
dois metros de comprimento.
Na
sala de aula, percebeu ser um estranho no ninho e entendeu que aquele era um
ambiente de famílias ricas e bem nascidas, todas ostentando seus brasões
herdados das batalhas contra Maurício de Nassau. Famílias que exerciam o poder
desde que a antiga cidade de Mauriceia estava quase inaugurando um presumível
Brasil holandês.
Naquela
hierarquização de tradições familiares, dada pelos brasões do tempo e pelo
poder econômico e político, só restava aos oito mais pobres da turma de 50
alunos sentar nas carteiras da última fila da sala de aula.
Primeira
aula, oito da manhã, Filosofia Jurídica. Entra na sala o professor Alberto
Alencar Nogueira. Desembargador no Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco,
terno bem cortado, voz tonitroante, cioso das suas tradições familiares, informou
aos alunos a sua condição de neto do Barão de Igarassu, tradicional senhor de engenho
pernambucano. Levava às últimas consequências uma tradição da cultura
pernambucana, ironizada por Ariano Suassuna: “Em Pernambuco, quem não é
Cavalcante é cavalgado”.
Começou
a fazer a chamada dos alunos e não escondia sua satisfação quase orgástica
quando identificava a tradição de cada família presente nos sobrenomes que o
estudante envergava. Augusto César Freyre Cavalcante. “Oh! Meu filho, você fará
uma fulgurante carreira no mundo jurídico. Duas famílias que honram as
tradições pernambucanas. Quero vê-lo ministro da suprema corte. Você tem berço”.
José Albérico Coelho Mendonça. “Não preciso comentar a tradição das grandes
bancas da advocacia pernambucana. Você vai longe como profissional do Direito”.
E assim seguiu o desfile de sobrenomes pomposos. Luiz Antônio Ferraz Medeiros.
Novos encômios. Maria Auxiliadora Gomes de Sá e Magalhães. O professor se
debulhava reconhecendo o barão bisavó da moça, o avô senador, o pai
vice-governador. Maria Clara Gonçalves Lira de Medeiros. O mestre se esmerava
para falar das tradições daquela família desde que chegara de Portugal.
A
cada nome chamado, João Carvalho da Silva entrava em pânico. O que fazer para
explicar origens familiares que ele desconhecia pelo simples fato de
inexistirem. Mas, a sua hora chegou. E veio embalada em uma pergunta
embaraçosa. “Meu filho, este Carvalho descende da tradicional família que veio
de Portugal e foi responsável pelo desenvolvimento da cidade de Floresta,
implantando grandes fazendas de criação de gado?” Resposta tímida em voz rouca
e fraca: “Não, professor”. O professor desembargador Alberto Alencar,
incansável, procurou uma família para enquadrar as origens do estudante em mais
de 10 grupos familiares dos grandes negócios e do poder político pernambucano,
sem sucesso.
Com
a irritação em alta, o professor deu o tiro de misericórdia. “Afinal, a sua família
Carvalho existe?”. Espirituoso, mesmo tímido, o inteligente João Carvalho
respondeu: “Fique tranquilo, professor. A família será fundada por mim”. Muito
irritado e arrogante, o professor desembargador bateu na mesa e exclamou: “Pela
sua tez, desde o início eu vi que não é um Carvalho muito frondoso”.
*Jornalista,
professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e
presidente da Academia Sergipana de Educação.
Parabéns, Professor, pelas narrativas tão inteligentes e bem humoradas.
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