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AS ÁGUAS DE NETUNO

Em pé: Ana Luiza, Carlos Vahle, Jorge Carvalho e Clériston Batista. Agachados: Jorge Torquato e Ronaldo Carvalho.

 

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Ronaldo Carvalho, Clériston Batista, Jorge Torquato, Carlos Vahle e Jorge Carvalho. Era a formação da Equipe Sercar, na qual durante a segunda metade da década de 70 do século XX participei de várias competições de pesca amadora nas praias dos Estados de Sergipe, Bahia e Alagoas.

Havia me entusiasmado com os molinetes e anzóis sob influência do meu velho e querido professor de Direito Civil, José Antônio de Andrade Góes, o Tonho Góes, que nos deixou precocemente, levado pelas agruras de um câncer. Com ele aprendi o prazer da pesca, do manuseio dos molinetes e me aprofundei no gosto pela cerveja gelada nas manhãs quentes das nossas praias, à época desertas. Pescávamos na Coroa do Meio, no Robalo e no Mosqueiro, principalmente.

Foi Clériston Batista, com quem eu trabalhava como técnico na Secretaria de Estado da Educação, que me levou para a equipe da Serraria Carvalho, a Sercar, onde conheci e me tornei amigo de Carlos Vahle, Ronaldo e Jorge Torquato. Na verdade, pescar era o de menos. Pouco importava quanto peixe nós conseguíamos retirar das águas do oceano e dos rios que frequentávamos.

Pescador mente. Para não fugir à regra nós mentíamos muito. Indagados pelos amigos, sempre informávamos haver pescado mais peixe do que as quantidades que havíamos efetivamente retirado do mar ou do rio. O que interessava era o companheirismo, a amizade, a camaradagem e as farras que aqueles dias ensolarados nos proporcionavam.

Na equipe Sercar, cada um com suas características. Carlos Vahle, o mais sereno, mais recatado, mais taciturno. Ronaldo, de todos, o espírito mais festeiro, mais aberto, mais atirado e espontâneo. Jorge Torquato, o mais rigoroso e aplicado na atividade de pescar. Clériston, o mais temperamental e ao mesmo tempo o mais afetuoso do grupo. Era a percepção que eu tinha de cada indivíduo daquela coletividade.

Minha carreira de pescador não durou muito.  Netuno me mandou um aviso informando que não gostava da minha presença em seus mares. Não me fiz de rogado. Me afastei da equipe de pesca e logo no início dos anos 80 mudei de Aracaju para São Paulo, dedicado que estava a carreira acadêmica, a fim de fazer um curso de Mestrado na Pontifícia Universidade Católica – PUC.

Fiquei muitos anos distante do mar. Quatro anos em São Paulo. Depois, voltei para Aracaju e ir à praia era frequentar os bares, de preferência longe da água. Depois, mais dois anos em Maringá, onde mar não existe. E mais um ano em andanças entre Cuba e o México. Novo regresso a Aracaju. Outra vez, a praia foi uma orla cheia de bares agradabilíssimos, sempre longe da água.

Por fim, nos anos 90, saí novamente de Aracaju, naquela ocasião para fazer doutorado, outra vez na PUC de São Paulo. Um ano em São Paulo frequentando algumas disciplinas do Doutorado e também estudando alemão, no Göethe Institute. Em seguida, quase dois anos na Universidade Frankfurt, na Alemanha. Duas cidades distantes do oceano. Na volta, mais um ano em São Paulo.

Somente no século XXI, em 2005, voltei ao mar. Embarquei num navio de cruzeiro, no porto de Santos, com destino a Buenos Aires. Pedi licença a Netuno e fui e voltei em paz e com muita tranquilidade. Venci o trauma que havia adquirido na última pescaria da qual havia participado com a equipe Sercar.

E justifico. Por muito pouco não perdi a vida naquele dia. Creio que era 1979. Pescávamos na praia do Robalo. Chegamos cedo, antes das nove da manhã. Maré estava começando a subir. Entrei no mar até ficar com água na cintura. Estava sobre um banco de areia. O mar estava literalmente “pra peixe”. Me animei. Peguei algumas vermelhas.

O tempo foi passando. Periodicamente eu enfiava a mão no “bocapiu” de napa, retirava uma cerveja e ia bebendo. Pegava mais um ou dois peixes. Duas horas depois, já cansando, a água subindo, resolvi que estava na hora de encerrar a pescaria. Fiquei chocado. Olhei para trás e achei que a praia havia recuado muito.

Eu estava em pé, a água do mar batendo no peito. Somente naquele momento percebi que ao chegar eu havia subido em um banco de areia. Tentei voltar e a água ultrapassando meu peito e chegando cada vez mais perto do meu pescoço. Entreguei ao mar o “bocapiu” com seis vermelhas e uma raia. Para nadar, descobri que necessitava abandonar também o molinete com a vara de pesca.

Comecei a nadar, mas as forças me abandonavam. Na praia, os companheiros da equipe Sercar perceberam a minha aflição. Se mobilizaram e se lançaram ao mar em braçadas, na minha direção. Jorge Torquato e Clériston logo cansaram. Eu estava distante e a maré enchendo. Acreditei haver chegado a minha hora de prestar contas ao criador. Netuno fora encarregado de fazer o chamamento.

Carlos Vahle e Ronaldo, num esforço extraordinário, continuaram a nadar, mar a dentro. Percebi que a ambos a resistência da maré já se fazia muito forte. O primeiro, com água até o pescoço segurou a ponta de uma vara de pesca e a estendeu a Ronaldo. Ele esticou uma outra vara em minha direção. Reuni as últimas forças até conseguir segurar a vara de pesca que veio em meu socorro.

Pouco a pouco eles foram me puxando até a praia. Foi a última vez que entrei no mar para fazer uma pescaria. Devo-lhes a vida. A Netuno pertencem as águas...

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

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