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CULTURAS, DIVERSIDADE, ESTRANHAMENTOS

 

                                              Universidade de Frankfurt

 

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

A Frau Marx impressionava os estrangeiros que chegavam a Universidade de Frankfurt, na Alemanha, durante a última década do século XX. Cerca de dois metros de altura, personalidade forte, voz tonitruante. 

Era a ela que todos se dirigiam ao chegar no poderoso departamento que ela chefiava, uma espécie de imobiliária da Johan Wolfgang Göethe Universität, onde era possível fazer as tratativas para alugar um imóvel, fosse o interessado alemão ou não. O único requisito era estar matriculado naquela instituição universitária.

Era o meu primeiro dia no campus da prestigiosa Escola de Frankfurt, onde chegara com uma bolsa sanduiche que me permitiria cumprir parte do programa de Doutorado em História da Educação que fazia na PUC de São Paulo.

Em Frankfurt, eu seria aluno e também pesquisador, frequentando importantes arquivos alemães, como os do Frobenius Institut, um importante centro europeu de pesquisa, especializado em América e África. Sem falar no Bundesarchiv, o Arquivo Nacional da Alemanha, na cidade de Koblenz.

Desde que desembarcara na cidade, dois dias antes, vinha marcando gols contra a minha própria meta. Uma sucessão de bolas fora no uso da língua alemã. Fiquei enrolado ao pedir a primeira informação no Flughafen Frankfurt am Main, o enorme aeroporto que centraliza a maior parte dos voos do mundo inteiro quando estes se dirigem à Europa.

Não foi diferente ao chegar na Hauptbahnhof, a bela estação central de trens da cidade, com seu imponente estilo oitocentista. Tropecei de novo, desta feita pedindo informações acerca de como chegar ao destino no qual eu ficaria hospedado, a Sonnemanstrasse, a rua do homem do sol.

O fato é que no segundo dia de Alemanha eu já estava convencido de que ainda sofreria muito até me relacionar bem com o idioma de Göethe. Fora um razoável aluno da melhor escola de alemão do mundo, morando em São Paulo, um ano antes de viajar: o Göethe Institut, que o governo da Alemanha mantém em muitas cidades de diversos países do mundo. Obtivera o certificado de proficiência G3, que permite a matrícula em instituições de ensino superior alemãs. Mas, manejar a língua com a desenvoltura necessária continuava a ser um embaraço.

Naquela manhã de segunda-feira fui fazer os meus primeiros contatos na Universidade, na Secretaria do Programa onde eu seria aluno e pesquisador, Fachbereich Erziehungswissenschaften Institut für Allgemeine Erziehungswissenschaft in der Dritten Welt, ou simplificadamente em Português, numa tradução livre, no Departamento de Ciências da Educação do Instituto de Ciências da Educação do Terceiro Mundo da Universidade de Frankfurt.

Ali, fui recebido pela Frau Ursula, com quem já conversava ao telefone desde o período de preparação para a viagem, ainda em São Paulo. Com ela regularizei minha matrícula, cuidei da documentação necessária e apresentei as credenciais que levava da PUC de São Paulo.

Das mãos dela recebi as informações e os documentos necessários à minha estada na Alemanha, inclusive um registro que me embasbacou por não entender qual a utilidade daquilo, em 1992: um endereço de e-mail. A internet ainda não era comum no Brasil e estava restrita a organizações militares e a algumas áreas de governo. Somente depois disto chegaria aos pesquisadores nas universidades.  

À Frau Ursula eu queria causar boa impressão. Era o primeiro contato formal que eu teria na Universidade. Tomei o metrô até o campus, atravessei a cidade de Frankfurt e cheguei ao escritório. Fui pelo caminho pensando em como cumprimentar e o que conversar com a Frau Ursula. Iniciei a conversa pelo pior caminho. Fiz a tradução literal de um cumprimento do Português para o Alemão e disparei: Viele Lustige. Uma espécie de tradução literal que me veio à cabeça do muito prazer utilizado no Brasil.

Percebi que minhas primeiras palavras não foram muito acertadas. A Senhora Ursula ficou muito séria. Jamais eu poderia utilizar tais palavras naquele contexto. Não era coisa que se dissesse a uma senhora. Menos ainda numa situação formal. A palavra lustige é mais adequada a conversas entre homens que são muito amigos em uma mesa de bar, pelo conteúdo que possui de comicidade, pelo seu sentido jocoso, mais apropriada para debochar de alguém, fazer troça, zombar. É este o tipo de prazer contido na palavra lustige, bem diferente do muito prazer da língua portuguesa.

Em algumas regiões da Alemanha, o muito prazer do Viele Lustige pode ganhar o sentido pornográfico, referente a sexo, a diversões ligadas a sexualidade e em alguns casos descambar para os sentidos da prostituição. Obviamente, recebi uma descompostura, fui perdoado por ser um estrangeiro recém chegado, mas aquilo não pegou bem.

Saí de lá encabulado e fui ao encontro da Frau Marx. Queria o quanto antes me livrar das tarefas daquele dia. Bem recebido, evitei o Viele Lustige e terminei cumprimentando como costumam fazer os alemães, com o clássico Guten Morgen! Ich Bin Jorge Carvalho (Bom dia! Sou Jorge Carvalho). Para eles é o que basta.

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

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