Jorge
Carvalho do Nascimento*
Não
foi fácil a vida do Capitão Médico Erônides Ferreira de Carvalho, nomeado
Interventor em Sergipe no ano de 1937, depois da farsa do Plano Cohen que
permitiu a Getúlio Vargas implantar o Estado Novo e governar o Brasil com mão
de ferro até 1945.
Na
política de Sergipe, o varguismo ficou irremediavelmente rachado. De um lado, a
liderança de Augusto Maynard Gomes, insatisfeito, mas bem assentado em uma das
cadeiras do Tribunal de Segurança Nacional, no Rio de Janeiro, e do outro o
Capitão Médico Erônides Ferreira de Carvalho, ocupante do Palácio Olympio
Campos, em Aracaju.
Erônides
governou até 1941, quando foi substituído pelo Capitão Milton Azevedo. Como
executor em Sergipe dos poderes excepcionais conferidos ao Executivo durante a
vigência do Estado de Guerra decretado por Getúlio Vargas, Erônides enfrentava
não apenas o “fogo amigo” da oposição feita pelos partidários de Augusto
Maynard, mas também a feroz resistência de jovens lideranças que se aliavam aos
comunistas em oposição a ditadura de Vargas.
Este
último, era o caso do jovem agente do fisco estadual Antônio Tavares de Jesus,
o Totonho, com pouco mais de 20 anos de idade, ocupante da destacada posição de
Exator em Propriá, em face do enorme prestígio que desfrutava a sua família, a
partir da Freguesia de Santo Antônio do Urubu de Baixo, a conhecida cidade de
Propriá, até a foz do rio São Francisco, em Brejo Grande.
O
grupo mais a esquerda movia uma ativa central de boatos em todas as regiões do
Estado e coordenadamente difundia informações que irritavam profundamente o
Interventor. Era uma das especialidades de Totonho. Erônides recebia todo tipo
de acusação. Nomear para os cargos no Estado os amigos, os familiares e as
amantes, era o de menos. Pagar as contas pessoais e dos familiares com recursos
do Tesouro Estadual, era uma acusação recorrente.
Os
gastos de mordomia da copa do Palácio Olympio Campos, afirmava Totonho,
incluíam o filé, a banha de porco, o lombo, o leite, a manteiga, pães,
biscoitos, conhaque, licores, vermouths, gim, cigarros, charutos e outras
bebidas finas presentes nas despensas
residenciais do Interventor em Aracaju e em Canhoba, dos seus parentes e
das suas amantes.
Da
mesma maneira, o Tesouro Estadual seria responsável pelo custo dos bem cortados
ternos que Erônides costumava envergar. E ainda era de lá que sairiam os
recursos necessários ao pagamento dos elegantes vestidos e sapatos usados pela
primeira dama e a roupa de outros parentes mais chegados do Interventor.
Totonho não perdia tempo e fuzilava: “inclua aí o que custa a roupa de mais
duas ou três raparigas”.
Boatos
desta natureza terminavam, inevitavelmente, chegando aos ouvidos de Sua
Excelência, fazendo fermentar e crescer ainda mais o ódio contra o jovem
Totonho, que já não era pequeno. A coisa foi num crescendo e no início do ano
de 1940, o Interventor tomou uma decisão radical, publicando um ato no qual
transferiu Antônio Tavares de Jesus da Exatoria de Propriá para a de Estância.
Não
seria este o castigo que intimidaria e calaria Totonho. Parece que o tiro saiu
pela culatra. Primeiro efeito colateral da transferência, queda vertiginosa da
arrecadação na rendosa Exatoria de Estância e nas Recebedorias de Santa Luzia e
Espírito Santo. Mesmo Estância possuindo um movimentado porto, que atendia algumas
indústrias e o seu comércio extremamente ativo. Totonho não ligava a mínima
para o trabalho de arrecada. Sua ocupação principal era frequentar bares,
restaurantes e cabarés.
Ademais,
a onda de boatos continuava a crescer, agora com a incorporação de mais um que
fizera o Interventor perder por completo as estribeiras. Boêmio, Totonho passou
a frequentar diariamente os lupanares estancianos afirmando que a genitora do
Interventor era viciada em jogar no bicho. “Tem dois meses que ela vem cevando
o porco, toda quarta e todo sábado”. Cevar o porco significava apostar muito
dinheiro naquele mesmo bicho até o dia em que ganhasse o primeiro prêmio.
Segundo
Totonho, a ideia era quebrar a banca, porém tudo combinado com o bicheiro, com
quem o prêmio seria rachado. Pedra de toque: o banqueiro estaria recebendo os
valores necessários a manutenção do vício da “primeira mainha” diretamente no
Tesouro do Estado.
Erônides
chamou o delegado de Estância em seu gabinete e deu a ordem: “abra um
inquérito. Quero botar este desqualificado na cadeia e demiti-lo do emprego que
ele tem no Estado”. Acelino regressou à chamada Cidade Jardim e intimou Tavares
a comparecer a Delegacia em dia e hora aprazados na intimação.
Totonho,
preocupado, procurou conversar com Luiz Garcia, seu amigo e advogado que sempre
o aconselhava a agir com mais ponderação, coisa que Tavares não ouvia.
Experiente no trato processual, Luiz Garcia foi peremptório: “Totonho, você
está muito enrolado. Seu caso é muito difícil”. Lá se foi Tavares ao delegado,
a fim de depor.
Sisudo
e mau humorado, o delegado Acelino informou a Totonho as razões da intimação e
diante do escrivão, fez a primeira pergunta: “É verdade que o senhor acusa o
Interventor de usar recursos do Tesouro Estadual para manter amantes?” Tavares
se dirigiu ao escrivão dizendo: “Escreva aí. Afirma-se nos bares da Estância
que o senhor Interventor possui duas amantes em Aracaju e uma em Canhoba, todas
teúdas e manteúdas, que a cada 30 dias vão ao Tesouro Estadual receber o
dinheiro para passar o mês”. E arrematava: “Coisa que o depoente não acredita”.
Igualmente,
falou da mordomia das despensas, dos gastos com roupa, de viagens ao Rio de
Janeiro, de pagamentos de carros de aluguel. E ao final de cada resposta,
sempre ressalvava: “Coisa que o depoente não acredita”. A última pergunta foi
sobre os gastos da mãe do Interventor no jogo do bicho. Atribuiu ter ouvido
tudo nos bares da Estância, mas sublinhou ao final: “Coisa que o depoente não
acredita”.
Nada
mais disse nem foi perguntado.
No
dia seguinte, o Diário Oficial do Estado de Sergipe publicou decreto
exonerando, a bem do serviço público, o Senhor Antônio Tavares de Jesus do
cargo de Exator Estadual.
*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.
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