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DA DEFESA DA HONRA AO ESTUPRO CULPOSO: O QUE MUDOU?


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

A Praia dos Ossos, em Armação de Búzios, no litoral do Estado do Rio de Janeiro, fica a 1295 quilômetros de distância da Praia de Jurerê Internacional, em Florianópolis, no Estado de Santa Catarina. É de 42 anos a distância no tempo entre o crime cometido por Doca Street, em 1976, e o crime cometido em 2018 por André de Camargo Aranha.

Em 1976 o Brasil vivia a plenitude de uma ditadura, não era dado aos cidadãos escolher através do voto os prefeitos das capitais, os governadores dos Estado e tampouco o presidente da República. Nas eleições que ocorreriam dois anos depois, em 1978, um terço do Senado Federal seria escolhido indiretamente, dando assento e poder no parlamento à esdrúxula figura do agente público que passou à história como “senador biônico”.

Naquele período, a moda feminina estava marcada pela influência do movimento hippie que criava peças como vestidos, calças boca de sino e levava as mulheres a ostentar flores, túnicas e bordados. A música era marcada por Led Zeppelin, Peter Frampton, Queen, Abba, Bee Gees, Belchior, Fagner, Ednardo, Arrigo Barnabé, Gilberto Gil e Caetano Veloso.

Nas ruas crescia a insatisfação política. O Movimento Democrático Brasileiro – MDB vira crescer o seu prestígio desde a eleição de 1974, enquanto os setores mais conservadores da caserna e dos serviços de segurança do Estado continuavam caçando comunistas e inquietando o país com os registros de desaparecidos políticos que cresciam.

Foi no Brasil de 1976 que Doca Street assassinou a mineira Ângela Diniz e foi levado a julgamento num processo que entrou para os anais do Direito Criminal brasileiro pelo seu forte conteúdo de misoginia e machismo. A vítima era mãe, separada, inteligente, dotada de refinado senso de humor, e, como mulher, consciente do direito que possuía de decidir sobre o seu destino, de conduzir sua própria vida pelos caminhos que desejasse.

O famoso advogado criminalista Evandro Lins e Silva, que defendeu Doca Street no processo, esgrimiu a tese da legítima defesa da honra e conseguiu uma sentença que transferiu para a vítima a responsabilidade por ter sido morta. Assassinada sem oportunidade de se defender, Ângela Diniz foi pintada pelo causídico no tribunal do júri como “vênus lasciva”, “prostituta de alto luxo” e “pantera que arranhava com suas garras os corações dos homens”.  

Dando de barato que toda a argumentação machista utilizada correspondesse a realidade, não era dado a Doca Street nem a ninguém o uso da violência e menos ainda tirar dela o direito de viver sob o modo que melhor lhe aprouvesse. A legítima defesa da honra que eximiu o assassino de responsabilidade era um instrumento jurídico que sequer estava previsto pelo Código Penal Brasileiro. Todavia, após o julgamento de Doca Street a tese foi amplamente empregada no tribunal do júri e livrou inúmeros feminicidas da culpa pelos crimes que cometeram.

O resultado do julgamento foi aplaudido pela maioria da sociedade brasileira e pôs a nu o conservadorismo machista dominante entre homens e mulheres e presente sem contestação no discurso da imprensa, de muitos membros do Poder Judiciário, das Igrejas, de muitos grupos de elite da chamada alta sociedade. À época, apenas alguns grupos feministas assumiram a luta contra tal ignomínia, olhados de soslaio pela cultura conservadora reinante no Brasil.

Apagam-se as luzes sobre o palco, fechadas as cortinas e substituído o cenário. Estamos agora em 2018 na glamourosa praia de Jurerê Internacional, em Florianópolis, reduto de ricos e famosos. Decorridos 42 anos do assassinato de Ângela Diniz, o empresário André Camargo Aranha cometeu o crime de estupro contra a blogueira Mariana Ferrer, violentada sexualmente.

Em 2018 o Brasil se apresentava ao concerto das nações como uma sociedade que fizera em 1986 uma Assembleia Nacional Constituinte e desde então buscava viver as regras próprias às sociedades democráticas, embora alguns momentos dessa trajetória sejam discutíveis e questionáveis. Mas, nada que efetivamente comprometa o estatuto de Estado democrático que o Brasil conquistou.

Os cidadãos possuem o pleno direito de escolher através do voto todos os seus parlamentares e governantes, inclusive o presidente da República. A moda feminina muda permanentemente e o que as mulheres do Brasil vestem influencia o cenário da moda internacional. A música que alegrava os mais jovens em 2018 causava um certo estranhamento nas pessoas de meia idade, ainda não familiarizadas com MCs como Loma e as Gêmeas Lacração ou com os hits de Zé Neto e Cristiano.

Algo não mudou neste final de segunda década do século XXI. O forte conteúdo de pensamento e prática machista da sociedade brasileira continuam muito presentes, quase meio século depois de haver Doca Street se beneficiado da tese de legítima defesa da honra. Como se comportarão agora os distintos grupos da sociedade brasileira diante de mais uma manifestação de conservadorismo machista? Quais homens e mulheres contestarão? Como será o discurso da imprensa? E dos membros do Poder Judiciário? O que dirão os ministros religiosos? O que dirá a elite da chamada alta sociedade? Será que apenas os grupos feministas assumirão a luta contra mais esta ignomínia? Será que tais grupos serão olhados de soslaio pela cultura conservadora reinante no Brasil?

No final da segunda década do século XXI, um magistrado catarinense ao julgar o caso de Mariana Ferrer acatou uma tese machista apresentada pela defesa. O argumento não tem previsibilidade no Código Penal Brasileiro, mas serviu para eximir o empresário André Camargo Aranha de responsabilidade. Para o juiz estamos diante de um caso de Estupro Culposo.

Sem mais palavras. Que falta nos faz o grito indignado de Belchior: “Na parede da memória/Esta lembrança/É o quadro que dói mais./Minha dor é perceber/Que apesar de termos/Feito tudo, tudo/Tudo o que fizemos/Ainda somos os mesmos/E vivemos/Como os nossos pais”.

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

Comentários

  1. Parabéns mais uma vez ao Prof. Jorge Carvalho por produzir um belíssimo comentário que muito nos enriquece em conteúdos bastante reflexivos sem que percamos o foco nas mudanças do comportamento humano, assim como, nas mudanças da política brasileira.

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