Jorge
Carvalho do Nascimento*
A
necessidade de compreender as questões com as quais convivemos num determinado
momento impõe que as abstraiamos inicialmente, retornando a elas em seguida.
Afinal, o risco de perder-se diretamente nelas pode levar-nos a um certo grau
de embaçamento da capacidade de discernir.
Ao
ser entrevistado por uma revista de circulação nacional, certa vez, um
ex-governador do Amazonas fez mais ou menos a seguinte afirmativa: “Se você
estiver caçando e no momento em que for atirar no jacaré aparecer um fiscal do
Ibama, não hesite: atire no fiscal do Ibama. Matar um jacaré é crime
inafiançável; matando uma pessoa, paga-se uma fiança e responde-se ao processo
em liberdade”.
É
óbvio que ninguém de bom senso pode tomar ao pé da letra a fala do velho líder
político amazonense. Como se não bastasse a sua conhecida ojeriza aos
movimentos de proteção ambiental, o homem sempre foi considerado na sua região
como um destrambelhado falador.
Não
obstante todas essas reservas, a fala do ex-governador evidencia o risco dos
exageros. De um lado o exagero daqueles que, como o citado chefe político, na
sua manifesta antipatia ao movimento ecológico, termina por chegar às raias do
absurdo na infeliz e arrogante exemplificação que cunhou.
De
outro lado, também, a exacerbada arrogância de algumas posições defendidas em
nome da construção de uma sociedade preservacionista que terminam por esquecer
e secundarizar um valor que deveria ser primordial: a condição humana. A defesa
de um ambiente natural saudável somente ganha sentido à medida que sejamos
capazes de articulá-la com a percepção de que nós, humanos, somos seres
naturais, uma das espécies do reino animal e que todos os animais necessitam
ter suas vidas protegidas. Inclusive nós, humanos.
Não
faz sentido uma natureza desumanizada, não faz sentido o ser humano
descaracterizado da sua condição de ser natural. Ela, a natureza, se objetiva
em face da consciência dos homens e deve ser preservada sempre em benefício de
todos os seres vivos, dentre estes os humanos.
Somos
de um tempo no qual os homens aprenderam a domar as forças da natureza. Os
espíritos e deuses imaginários que povoavam a Terra, as florestas sombrias, as
montanhas solitárias e os mares perigosos existem agora, conscientemente,
apenas nos sonhos e já desencantaram a natureza.
Nos
anos 70 do século XX fez muito sucesso uma música do compositor Eduardo Dusek
chamada Rock da Cachorra. Os versos exortavam as pessoas a trocarem os seus
cães por crianças pobres. Um evidente exagero. Porém um discurso fácil e
atraente que mexeu com a sensibilidade superficial, panfletária e irrefletida.
Não
se trata de trocar cães por crianças pobres, mas sim de cobrar uma ação eficaz
de todos no sentido de que sejam construídas políticas sociais competentes e
capazes de garantir um futuro promissor para a infância e a juventude, bem como
proteção a todos os seres vivos e aos recursos naturais.
Simplesmente
não dá para cobrar dos cães e dos seus donos a responsabilidade pelas
contradições da política social e das limitações que lhe são impostas pelos
múltiplos interesses econômicos como o fez em relação aos jacarés o político
amazonense aqui citado.
São
todas essas, sem nenhuma dúvida, posições extremadas. O mundo, tal como é, está
muito distante dos desejos humanos. Tenho visto com frequência, não sem
inquietação, a imprensa abrir espaço para discutir o problema da violência dos
cães, principalmente os da raça Pit Bull.
Não
sou nenhum conhecedor do tema dos cachorros. Contudo, outra vez creio que o
debate nos levou a posições extremadas, colocando como radicais tanto os
defensores desse tipo de animal quanto aqueles que se põem radicalmente contra
estes. Os últimos pretendem vê-los castrados e alguns mesmo chegam a propor o
extermínio da raça. Os primeiros chegam ao exagero de afirmar que este tipo de
animal é extremamente dócil e não representa qualquer tipo de perigo.
Nem
tanto ao mar, nem tanto à terra. Dócil, a raça não é. Todavia os animais podem
ser domesticados e, desde que cuidados e mantidos sob o adequado controle, é
possível a convivência com estes no ambiente urbano. Em Aracaju, por exemplo,
já vigora lei que estabelece as condições sob as quais os cães podem ser
conduzidos na via pública, definindo equipamentos e cuidados necessários para
que os animais não ameacem a integridade física, o bem estar e o sossego dos
cidadãos.
Cada
um pode manter o seu cão, no espaço privado da sua residência, desde que tome
as medidas acautelatórias necessárias, principalmente ao levá-lo à via pública.
Esta talvez seja uma boa regra e um bom modo de convivência. Estabelece os
limites e o direito à vida que tem o animal, sem, todavia, assumir posições
demagógicas que têm a aparência de politicamente corretas, mas que terminam, em
certa medida, por desumanizar a vida.
Nem
sempre aquilo que as pessoas das sociedades que alguns consideram “mais
desenvolvidas” sentem e experimentam corresponde a natureza de todos os homens
dos diferentes espaços sociais ao redor do planeta. Há necessidade de observar
as diferenciações culturais.
Em
1995 visitei Koblenz, na República Federal da Alemanha. Tomei um choque na
praça principal da cidade ao deparar-me com um imenso cartaz que percebi ser a
expressão limite de um dos pontos ao qual pode conduzir visões de um mundo radicalizadas,
principalmente quando a preservação da vida de humanos e de animais é sempre secundarizada.
O
choque foi imenso e fotografei o cartaz. Um corpo de criança com uma cabeça de
gato, encimado pela seguinte frase: “As crianças precisam de mais amor que os
animais domésticos”. No rodapé, uma outra frase: “Dê mais tempo às crianças”.
Era uma campanha de uma fundação alemã, preocupada com o fato de que os
cidadãos daquele país são tão entusiasmados com cães e gatos que construíram
uma sociedade na qual as pessoas estão mais preocupadas com o cuidados que
devotam a estes bichos e convivem harmoniosamente com eles em estabelecimentos
comerciais, vias e logradouros públicos, ônibus, trens e metrôs, ao mesmo tempo
em que são extremamente intolerantes para com as crianças.
Muitas
vezes quando divinizamos a natureza esquecemos de verificar que esta já foi
muito trabalhada pelos homens e está bastante domesticada. Foi o trabalho dos
homens que fez com que o meio em que vivemos se tornasse mais suportável, mesmo
que algumas vezes tenhamos a tentação de estabelecer uma escala de valores
invertida.
Para
os homens o processo mais importante deste mundo não pode e nem deve ser o da
natureza pré-humana, mas sim a qualidade de vida dos próprios homens. Crianças
precisam de carinho e atenção. Humanos, de um modo geral necessitam de atenção e
carinho.
Animais
domésticos precisam de carinho e proteção. Animais silvestres devem ser mantidos
em seu habitat natural, preservado. A vida de todos requer proteção. Para isto,
é essencial cuidar da natureza, preservar os recursos naturais. Nós podemos
preservar e excepcionalmente domesticar e embelezar a natureza ou simplesmente
estropiá-la. Nós podemos preservar a vida ou simplesmente desprezar a
importância de viver. A escolha é nossa.
*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.
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