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ROGER CHARTIER E A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO - II

                                                            Roger Chartier

 

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Sob o quadro interpretativo concebido por Roger Chartier, o exercício do trabalho de historiar impõe, portanto, o trato de problemas conceituais como representação, prática e apropriação. É a partir deles que Chartier considera questões como as formas narrativas do discurso histórico e literário, fundamentais à interpretação dos documentos que o historiador toma por objeto.

Para entender tal operação é fundamental que se apanhe o modo como as ideias das sucessivas gerações de historiadores a exemplo de Pierre Bordieu, Michel de Certeau, Michel Foucault e Paul Ricoeur, influenciados pela Escola dos Analles, têm sido recebidas no Brasil.

Também, o modo como têm sido recebidas no Brasil as ideias de alguns autores influenciados pela Escola de Frankfurt, como Gadamer, Geertz, Habermas, Jauss e Norbert Elias. Para Roger Chartier, um autor somente pode ser lido e entendido quando se leva em consideração o contexto no qual o seu trabalho foi produzido.

Pensar, portanto, os processos de civilização, é incorporar a possibilidade de ir do discurso ao fato, questionando a ideia de fonte como mero instrumento de mediação e testemunho de uma realidade e considerando as representações como realidade de múltiplos sentidos.

Mesmo porque, as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem as utiliza (Chartier, Roger. “O Mundo como Representação”. In: Estudos Avançados. 11(5), São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da USP, 1991: 16).

Em Chartier, a história da leitura é distinta do caráter quantitativo que tinha esse tipo de história até a década de 70 do século XX, não estando assim subordinada a uma classificação social que é de natureza econômica e política. Ler implica num conjunto de práticas de exclusão e de classificação que tornam operatória a noção de leitura, pensando a relação dos procedimentos com as fontes, o que, como demonstra, diz respeito a práticas e representações.

Uma figuração pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real. Um texto pode aplicar-se à situação do leitor e como configuração narrativa pode corresponder a uma refiguração da própria experiência. Por isto, entre o texto e o sujeito que lê coloca-se uma teoria da leitura capaz de compreender a apropriação dos discursos, a maneira como estes afetam o leitor e o conduzem a uma nova forma de compreensão de si próprio e do mundo.

Ele esclarece que os agenciamentos discursivos e as categorias que os fundam – como os sistemas de classificação, os critérios de recorte, os modos de representações – não se reduzem absolutamente às ideias que enunciam ou aos temas que contêm. Possuem sua lógica própria – e uma lógica que pode muito bem ser contraditória, em seus efeitos, como letra da mensagem (Chartier, 1991: 17).

Para entender a historicidade das configurações textuais é necessário romper com o conceito universal e abstrato de sujeito, uma vez que as abordagens que consideram o ato de ler como uma relação transparente entre o texto e o leitor são insatisfatórias. O texto não é uma abstração reduzida ao seu conteúdo semântico e não existe fora dos objetos que o oferecem à decifração; o texto não é depositado nos objetos, manuscritos ou impressos e o leitor não é uma abstração.

As práticas das quais o leitor se apropria são histórica e socialmente variáveis. Chartier afirma que o leitor não é um bloco de cera mole no qual se inscreve o texto. O processo de construção de sentido do texto, da interpretação, está situado entre leitores dotados de competências específicas, identificados pelas suas posições e disposições, caracterizados pela sua prática do ler.

Nos textos, o significado se encontra sempre dependente dos seus dispositivos tipográficos, uma vez que a relação texto-leitor é móvel, diferenciada, dependente das variações e da modalidade da leitura (silenciosa, oral, sacralizada, laicizada, comunitária, solitária, pública, privada, elementar, virtuosa, popular e letrada).

Nos seus estudos sobre leitura Chartier destaca a importância dos estudos sobre bibliotecas públicas e privadas e a contribuição que este tipo de estudo oferece à análise das práticas educacionais. Contudo, chama a atenção para o fato de que tais estudos não podem se restringir apenas ao âmbito da distribuição e posse dos livros, denunciando as limitações da alfabetização.

Os estudos que procedem deste modo são importantes, porém insuficientes para esclarecer as formas de apropriação e representação da leitura. É necessário compreender as práticas, os usos que os indivíduos fazem dos artefatos de leitura, a maneira como incorporam os modelos que são difundidos.

É fundamental dar historicidade a todos esses atos, dar sentido aos objetos próprios ao uso do texto, da história do livro e da leitura. É importante compreender os métodos da escrita e da leitura e buscar todo e qualquer tipo de registro, uma vez que cada leitor, a partir de suas próprias referências, individuais ou sociais, históricas ou existenciais, dá um sentido mais ou menos singular, mais ou menos partilhado, aos textos de que se apropria. Reencontrar esse fora-do-texto não é tarefa fácil, pois são raras as confidências dos leitores comuns sobre suas leituras (Chartier, Roger. Escribir las Praticas: Foucault, de Certeau, Marin. Buenos Aires: Manantial, 1996: 20).

Além da história do livro e da leitura, os estudos de Roger Chartier criaram condições para que a História da Educação incorporasse também outras contribuições importantes da História Cultural. Foram valorizados alguns sujeitos esquecidos da História da Educação como crianças e mulheres, ao tempo em que houve uma valorização dos sentimentos, emoções e mentalidades e de fontes até então consideradas pouco confiáveis como a fotografia, a literatura, as estatísticas escolares.

Do ponto de vista dos objetos culturais, aconteceu uma grande valorização da produção, circulação, consumo, práticas, usos e apropriações. O cotidiano escolar ganhou relevância por meio de estudos que buscaram compreender a organização e o funcionamento interno das escolas, a construção do conhecimento escolar, o currículo e as disciplinas escolares, os agentes educacionais, a imprensa pedagógica, a educação feminina, os negros, os indígenas os jovens.

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.
 

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