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O CÃO DE ZEZA


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

O processo da Homeopatia normalmente trata os pacientes com doses diluídas de seus compostos terapêuticos, ministradas parcimoniosamente. Médico homeopata, Zeza Vasconcelos, José Vasconcelos dos Anjos na sua certidão de nascimento, quando assume as suas vestes de escritor deixa de lado a mansidão da sua especialidade profissional. A sua pena nos põe diante de uma vigorosa narrativa que retira da letargia, desde a primeira linha, o mais apático dos leitores, com enredos densos, tensos e sedutores.

Diversamente da Homeopatia, que sempre busca o equilíbrio, a escrita de Zeza retira o leitor da sua zona de conforto e o coloca no centro de um turbilhão tsunâmico de personagens, fatos e contextos que chocam, mas mostram a vida real tal como ela é, ao estilo da escola bem representada no Brasil por Nelson Rodrigues.

Em alguns textos o leitor cambaleia, em outros é nocauteado desde a primeira página. Esta foi a impressão que ele me produziu em SUÍTE DOS VIAJANTES, em SARA e no livro de contos O HERBANÁRIO DE TIA FINHA E OUTRAS CURTAS ESTÓRIAS. Agora, ele foi intenso em CÃO SARNENTO.

Acabei de fazer a leitura deste seu último romance, publicado este ano pela Criação Editora, numa bonita brochura de 145 páginas impressas em papel Polen. Um bem acabado projeto gráfico concebido por Adilma Menezes. São 35 capítulos nos quais Isaac, principal personagem, vive a sua saga de mascate cansado da vida errante pelo interior do Brasil e busca fincar raízes numa pequena cidade do sertão do Nordeste.

Cidade típica. Se anima quando a marinete chega, transportando forasteiros e devolvendo às suas famílias os que fazem negócios e trabalham fora ou que foram resolver problemas da vida em outras paragens. Gente que chega pra ficar poucas horas, poucos dias ou para sempre.

Aglomerado urbano que se entristece na hora da partida do trem. Gente que vai pra nunca mais voltar. Gente que parte para ver o mundo. Gente que vai pra ficar uns dias. Outros que saem para trabalhar, tratar da saúde, visitar parentes, tudo como no poema Encontros & Despedidas eternizado em música por Milton Nascimento.

As coisas do amor que leva aos casamentos de desiguais são muito importantes na trama de Zeza. A orgia e a lascívia dos hotéis das pequenas e grandes cidades, onde forasteiros, “acompanhantes” (é esta a denominação que dissimula mecanismos utilizados por moças de “boa família” e outras de família não muito “boa” a se prostituir discretamente para ganhar um dinheiro extra), e prostitutas profissionais se mesclam num negócio visto como socialmente desonroso, porém amplamente tolerado.

Um comendador que governa a vida, os negócios da economia e a morte dos que lhe desagradam. A ele se subordinam o prefeito, o juiz, o delegado, o padre, o promotor, o contador, a diretora da escola, os comerciantes e suas famílias. Ele define a correta interpretação da lei e a aplicação do Direito. Dentre os seus direitos, o chefe inclui o medieval “direito a pernada” que lhe reserva a primeira noite daquelas moças de pernas roliças, ancas largas e seios fartos, quando chegam à idade na qual os hormônios se inquietam.

Uma cidade corrompida, como aquela onde vivia a prostituta Geni, a do Zeppelin, cantada por Chico Buarque. Contritos, todos vão a missa, confessam arrependidos os seus pecados e recebem o perdão de um padre que é parte do mesmo sistema e se apraz fornicando beatas e desvirginando secretamente mocinhas de família.

Meninas de pequenos povoados inóspitos, fugidas da seca e da fome, com esperança de conseguir na cidade uma vida digna e decente. Se a sorte ajudar, também um bom casamento. Mesmo que para isto seja necessário inquietar as matronas, mães de família bem estabelecidas que zelam pelos seus pançudos maridos endinheirados.

As surpresas vão se revelando numa trama da qual o leitor não se desgruda, ávido em descobrir o que reserva o futuro a cada personagem e, principalmente ao judeu Isaac e aos amores que povoam o seu imaginário até que tal potência seja vertida em ato afetivo que se transforma sempre no néctar obtido a partir dos prazeres da carne.

É deste CÃO SARNENTO que se faz o novo romance de Zeza Vasconcelos. Li, gostei e recomendo. Desejo uma boa leitura àqueles dispostos a sacolejar pelas poeirentas estradas do interior do Brasil e viver as mazelas dissimuladas pela tintura fosforescente das boas relações sociais.

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana der Letras e presidente da Academia Sergipana e Educação.

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