Pular para o conteúdo principal

MORANDO EM MINAS GERAIS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX

                                                     Ney Carvalho



 

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Um depoimento da mineira Ney Carvalho é revelador da infraestrutura e dos hábitos existentes nas casas em que viviam os colaboradores mais graduados da Companhia Vale do Rio Doce - CVRD, construídas em várias cidades mineiras e capixabas ao longo da Estrada de Ferro Vitória-Minas.

Ney morou em algumas casas pertencentes a Companhia Vale do Rio Doce, em cidades do Estado de Minas Gerais. Seu Pai, Ozéias Carvalho, era guarda-chaves da CVRD. A empresa costumava construir as casas dos funcionários graduados de cada cidade, como o chefe da estação e o guarda-chaves, sempre nas proximidades da Estação local e acompanhando o traçado da linha do trem que, invariavelmente, corria em paralelo às margens do Rio Doce.

A Companhia manifestava com muita clareza a sua preocupação em oferecer boas condições de moradia aos seus colaboradores, principalmente os guarda-chaves, essenciais ao bom funcionamento da ferrovia. Toda a exportação de café e de frangos da região de Resplendor era escoada pela estrada de ferro e o sucesso das operações tinha no guarda-chaves uma parte essencial da responsabilidade. O guarda-chaves coordenava todo o processo de carregamento dos vagões com café e frangos.

Não obstante a elevada responsabilidade, esse tipo de profissional muitas vezes conseguia conciliar o trabalho da estrada de ferro com outras atividades. Ozéias Carvalho, o pai de Ney, se associou a um seu compadre que era proprietário de uma oficina de caldeiraria e passou a fabricar tachos de cobre e alambiques.

Até a metade do século XX era raro o serviço de abastecimento domiciliar de água encanada e tratada. Apenas nas zonas centrais e em alguns bairros onde viviam famílias mais abastadas era possível dispor de tão importante serviço público. Mesmo os que moravam em residências com boa infraestrutura, construídas em alvenaria, com acabamento esmerado e luxuoso, mantinham em seus quintais poços artesianos, compravam água em ancoretas transportadas por tropas de burros ou buscavam rios, lagoas e riachos próximos para se abastecer.

A casa na qual Ney Carvalho morou durante mais tempo, na cidade mineira de Resplendor ficava na margem do Rio Doce. Todos consideravam a moradia uma maravilha. O quintal terminava no rio. Era diretamente naquele importante curso d’água que a família possuía uma bancada no quintal de casa, onde lavava a roupa, a louça, as panelas, os talheres e os demais utensílios domésticos. A menina Ney acompanhava diariamente a sua mãe, Zita, na realização desses serviços domésticos à margem do Rio Doce.

A casa tinha piso de madeira, com tábuas largas. No quintal havia uma escadaria que levava até a margem do Rio Doce. Em épocas de chuva, por ocasião das cheias do rio, a água chegava até a metade da escadaria. O imóvel tinha dois quartos, uma sala, uma cozinha e um banheiro grande.

A dispensa, onde eram guardados os mantimentos, curiosamente, ficava no mesmo espaço do banheiro. Na lateral da casa havia uma varanda. No banheiro, juntamente com a dispensa, ficava um vaso sanitário. Na cozinha, havia um grande fogão que utilizava lenha como combustível.

O imóvel estava localizado na rua em que moravam as personalidades mais importantes de Resplendor. Vizinho a casa do guarda-chaves vivia um próspero comerciante. Na mesma rua morava o mais solicitado advogado local. Ao lado da casa do advogado funcionava um cartório e do outro lado residia o juiz de Direito.

Do lado contrário vivia o médico Benício Tavares Pereira. Vizinho ao esculápio morava o dentista e logo após um outro advogado. Em seguida estava a casa de um farmacêutico local, Amantino Soares. Um outro farmacêutico, Antônio Bernardino, proprietário da Farmácia do Povo, vivia naquela rua. Antônio dos Santos e Laura, que também habitavam o logradouro, eram os proprietários da mais importante loja de tecidos da cidade.

Esse modelo de moradia ocupado pelas famílias das camadas médias da sociedade era recorrente em várias cidades brasileiras durante toda a primeira metade do século XX e persistiu, em algumas situações, até a década de 70 daquela centúria. A partir de então, os espaços foram se reduzindo e nos núcleos urbanos mais populosos as habitações se verticalizaram.  

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, professor aposentado do Departamento de História, do Mestrado em História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Membro da Academia Sergipana de Letras, da ABROL e presidente da Academia Sergipana de Educação.
 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A REVOLTA DE 13 DE JULHO, OS SEUS REFLEXOS SOCIAIS E OS MÚLTIPLOS OLHARES DA HISTÓRIA

      José Anderson Nascimento* Jorge Carvalho do Nascimento**                                                                                              Qualquer processo efetivamente vivido comporta distintas leituras pelos que se dispõem a analisar as evidências que se apresentam para explicá-lo. Quando tais processos são prescrutados pelos historiadores, a deusa Clio acolhe distintas versões, desde que construídas a partir de evidências que busquem demonstrar as conclusões às quais chega o observador. Historiadores como...

TARCÍSIO TEIXEIRA E A DEMOCRACIA EM SERGIPE

     Jorge Carvalho do Nascimento     No dia de ontem, sábado, 23 de novembro de 2024, Tarcísio Teixeira completou 81 anos de nascido. Aracajuano, economista e empresário, ele é um dos filhos do empresário Oviedo Teixeira. Após o golpe militar de 1964, Tarcísio esteve ao lado do seu irmão José Carlos Teixeira, do seu pai, Oviedo Teixeira, e do seu irmão Luiz Antônio Teixeira, exercendo um papel preponderante na política de Sergipe, ao lado deles ajudando a liderar o processo de organização do partido que se opôs à ditadura no Estado. O aniversário de nascimento de Tarcísio Teixeira me levou a lembrar do livro MEMÓRIAS DA RESISTÊNCIA:O MDB E A LUTA CONTRA A DITADURA MILITAR EM SERGIPE. Dentre os que publiquei é um dos livros que mais me agrada. O trabalho entrou em circulação no ano de 2019 com o selo da Editora Criação, dirigida por Adilma Menezes. Com ela publiquei a maior parte dos meus livros. A produção daquele estudo foi um sonho que acalentei...

O LEGADO EDUCACIONAL DE DOM LUCIANO JOSÉ CABRAL DUARTE

  Jorge Carvalho do Nascimento     A memória está depositada nas lembranças dos velhos, em registros escritos nas bibliotecas, em computadores, em residências de particulares, em empresas, no espaço urbano, no campo. Sergipe perdeu, no dia 29 de maio de 2018, um dos seus filhos de maior importância, um homem que nos legou valiosos registros de memória que dão sentido à História deste Estado durante a segunda metade do século XX. O Arcebispo Emérito de Aracaju, Dom Luciano José Cabral Duarte, cujo centenário de nascimento celebramos em 2025, foi uma das figuras que mais contribuiu com as práticas educacionais em Sergipe, sob todos os aspectos. Como todos os homens de brilho e com capacidade de liderar, despertou também muitas polêmicas em torno do seu nome. Ao longo de toda a sua vida de sacerdote e intelectual da Educação, Dom Luciano Duarte teve ao seu lado, como guardiã do seu trabalho e, também da sua memória, a expressiva figura da sua irmã, Carmen Dolores Cabral Duar...