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EU, KAFKA E GREGOR SANSA


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

No ano que vem, 2024, registraremos o centenário da morte do escritor tcheco Franz Kafka e, um ano depois, em 2025, celebraremos os 110 anos de publicação de um dos mais importantes livros de toda a história da literatura – A METAMORFOSE. No mesmo ano será comemorado o centenário de publicação de O PROCESSO, do mesmo autor.

A METAMORFOSE é um texto curto, fascinante, misterioso e polêmico. Para início de conversa, Kafka nunca explicitou se Gregor Sansa, personagem principal do seu conto havia mesmo se transformado em uma barata. Todavia, o onipresente inseto é citado sempre como sendo o astro do enredo.

Para alguns intérpretes da obra de Kafka, o pobre Gregor Sansa se metamorfoseou em outro inseto, um besouro não menos asqueroso, aquele que atende pela designação popular de “Rola Bosta”. O texto de Kafka desnuda e põe do avesso o vale de lágrimas vivido pelo inditoso Gregor Sansa.

Discriminado e segregado pela sua família, Sansa vive as dores de haver se transformado em objeto de repulsa e vergonha dos seus pais e irmãos, o que era comum no início do século XX, quando o fato de possuir um familiar enfermo era uma desdita resultante de algum grave comportamento pecaminoso.

Era esta imagem da doença que fazia necessário e imperioso ocultar o enfermo, deposita-lo em cômodos da casa aos quais ninguém deveria ter acesso e, muitas vezes, até acorrenta-lo. Esta era a regra válida e aplicável a qualquer enfermidade, condição emocional ou padrão de comportamento que fugisse àquilo que os cânones sociais sancionavam como adequados.

A literatura de Franz Kafka nos mostra com crueza de que modo a sociedade esmaga os homens, da mesma maneira que os humanos se comprazem ao pisotear baratas. Como os homens, as baratas respiram, com a vantagem que alguns estudiosos lhe atribuem de resistir a uma hecatombe nuclear. O seu maior risco é mesmo o pisoteio humano.

Como os humanos enfermos são para algumas famílias um forte incômodo, a barata é um grande estorvo com o qual os homens convivem e do qual tentam fugir com o seu nem sempre eficiente arsenal de inseticidas que buscam por todas as formas destruir o horripilante bicho.

Ao transformar Gregor Sansa em barata, Kafka lhe impõe um pesado castigo que termina por purifica-lo diante das máculas que a vida costuma descarregar sobre todos os humanos. Inevitavelmente fadados à morte, os homens, como a barata de Kafka, experimentam dores sociais extremamente cruéis.

Convivi com uma situação que posso chamar de kafkiana no já distante ano de 1999, quando fui candidato à Cadeira 34 da Academia Sergipana de Letras. Claro, o meu sofrimento em nada se compara ao de Gregor Sansa, mas sem nenhuma dúvida foi por mim vivido em silêncio.

Cumprindo a praxe da Academia de Letras, uma vez candidato fui visitar cada um dos membros da arcádia. Acompanhado do amigo acadêmico que me sugeriu a candidatura, fiz as visitas, entreguei o meu currículo e conversei tentando demonstrar que possuía o preparo para ser um dos pares de cada um deles.

Tudo transcorreu muito bem e fui recebido de modo sempre delicado e cortês por cada um dos acadêmicos, até que numa daquelas ocasiões tive a sensação de haver chegado à residência de Gregor Sansa. A casa era boa, bonita e confortável e o seu proprietário nos recebeu com um largo sorriso no rosto, ao lado da sua delicada consorte.

O anfitrião já não mais vive entre nós. Todavia, enquanto aqui esteve foi um intelectual de muito brilho com o qual sempre proseei com muito gosto. A conversa correu leve e gostosa. Ele examinou a cópia do meu currículo que havia recebido e fez algumas perguntas, tentando entender melhor algumas situações referenciadas.

Perto da hora dos cumprimentos de despedida, a dona da casa nos ofereceu um pedaço de bolo com um copo de guaraná Antártica. Estávamos sentados em uma mesa na sala de jantar. Eu fiquei numa posição em que, de soslaio, podia perceber parte das coisas que ocorriam na cozinha.

A trabalhadora doméstica que servia ao casal foi chamada pela anfitriã e recebeu as instruções para iniciar o serviço de lanche. Vi o zelo utilizado pela moça para colocar o refrigerante em cada um dos copos. Ao lado do copo, quatro pratos de sobremesa fabricados em fina porcelana decorada.

Meus olhos atendiam a dois sentidos aos mesmo tempo. Acompanhavam a conversa ao redor da mesa e observavam cada detalhe do que acontecia na cozinha. Era o único dos quatro convivas a desfrutar daquela posição que me parecia então privilegiada. Parecia, mas em poucos minutos percebi que seria melhor não ter visto o que se descortinou sob a minha visão.

Bem-feito. Importante aprender que a indiscrição não vale a pena. Tive a impressão de me deparar com a mão de Franz Kafka redivivo levantando o abafador do bolo. Foi um erro estar tão atento ao que se passava na cozinha. Sob o abafador um bonito e convidativo bolo no qual passeava um exemplar de Gregor Sansa metamorfoseado por Kafka.

Andou sobre a guloseima e voou. A trabalhadora doméstica nada percebeu ou fez que não viu. Eu vi, com riqueza de detalhes, o passeio e o voo do inseto medonho. Os pratos com pedaços da iguaria chegaram à mesa. Raciocinei rápido e fiquei convencido que tão indelicado quanto relatar o que ocorrera na cozinha seria não comer sequer um pequeno pedaço da guloseima.

Me bastaram um único gole do refrigerante e um pequeno pedaço do centro do bolo que estava em meu prato, o qual recortei cuidadosamente, livrando-me das partes externas do petisco. O amigo que me acompanhava na visita comeu a parte que lhe coube vorazmente. Achei de bom tom mantê-lo ignorante sobre o que ocorrera na cozinha.

Fui eleito para a Cadeira 34 da ASL. Dos quatro convivas apenas eu ainda não fui convocado para prestar contas ao Criador. Espero que isto demore muito a ocorrer. Enquanto por aqui estou, a cada vez que passo em frente àquela residência tenho a impressão de ser perseguido pelos fantasmas de Gregor Sansa e de Franz Kafka.

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

Comentários

  1. Poderia ser um Shakespeare adaptado: “comer ou não comer, eis a questão”. Muito bom, mestre.

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  2. Jorge, exacerbou. O texto enxuto e a comparação entre sua realidade e a de Kafka são geniais.
    Chico Varella

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  3. Que situação!!!! Comer ou não comer? ....conseguiu a melhor opção!!!

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  4. Como sempre genial!!! Parabéns Professor Jorge Carvalho do Nascimento!

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