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GRATIDÃO, ADMIRAÇÃO E AMIZADE


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

No final da década de 70 do século XX eu estava matriculado no curso de Direito da Universidade Federal de Sergipe e necessitava cursar alguma disciplina para completar alguns créditos de disciplina optativa que faltavam em grande quantidade no meu histórico escolar.

Foi este o moto que me fez aluno da erudita professora Maria Thétis Nunes. Matriculado em Cultura Brasileira,  fui encontra-la em sala de aula, como seu aluno. Além de estudante de Direito estava concluindo o curso de Pedagogia e era redator dos noticiários da TV Atalaia.

A minha jornada de trabalho acrescida das atividades de estudante faziam o meu dia de trabalho ser muito extenuante. Deste modo fui à primeira aula de Cultura Brasileira encharcado de má vontade. A professora entrou na sala de aula e imediatamente se fez um respeitoso silêncio. Todos sentaram-se e ficaram atentos. O nome de Maria Thétis Nunes impunha respeito.

Saí da primeira aula encantado com a erudição daquela mulher. Intelectual leve, com extraordinária capacidade de se comunicar com os estudantes, seduzia pelas palavras e pela competência que tinha para expor ideias complexas de um jeito simples, recomendar bibliografia que elucidava os temas expostos e disposição para dirimir dúvidas dos estudantes.

Após a terceira aula, a ela eu já me referia como a melhor professora que eu conheci em toda a minha vida estudantil, desde o primeiro dia que cheguei a uma escola. Era patente para todos, inclusive para a mestra, a minha admiração pelo seu trabalho. Dei tudo que eu poderia dar na condição de estudante, impressionando a professora. Fui aprovado com nota máxima e viramos amigos.

Em 1984, quando Thétis publicou a sua História da Educação em Sergipe, eu estava concluindo o Mestrado em História da Educação na Pontifícia Universidade Católica -  PUC de São Paulo. De férias em Aracaju, fui à tarde de autógrafos no hall do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe.

Para minha surpresa, fui tratado com muito afeto pela professora que no seu texto de autógrafo colocado no meu exemplar do livro destacou a minha condição de seu ex-aluno de Cultura Brasileira naquele momento dedicado a pesquisa em História da Educação. O trabalho de Thétis me entusiasmou e devorei o livro em três dias. No quarto dia escrevi uma resenha que foi publicada pelo jornal Gazeta de Sergipe.

Concluí o Mestrado, prestei concurso para a disciplina História da Educação, no Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, onde trabalhei entre 1988 e a aposentação em 2017. A partir de 1993, fiquei quase dois anos fazendo pesquisa em História da Educação na Universidade de Frankfurt, na Alemanha, e em 1997 defendia tese de doutorado em História da Educação, na PUC de São Paulo.

Enquanto Thétis permaneceu no Departamento de História, mantive o hábito de sentar ao seu lado nas reuniões do colegiado departamental e dela sempre ouvi ponderações que me ajudaram no trabalho da UFS. Quis a vida que, em 1999, Thétis fosse juntamente com Luiz Antônio Barreto uma das patrocinadoras da minha candidatura à cadeira 34 da Academia Sergipana de Letras, na sucessão da professora Núbia Marques.

Também na Academia, sentava-me ao lado da mestra e, ao menos uma vez por semana, no final da tarde, ia ao seu apartamento no Edifício Atalaia para longas sessões de bate papo sobre História e Historiografia de Sergipe. Eram conversas que duravam cerca de três horas nas quais ambos, glutões, degustávamos generosas quantidades de salgadinhos e outros acepipes que eu levava, tudo acompanhado pelas doses de Johnn Walker que ela oferecia. Na hora que ela enchia dois cálices com vinho do porto eu sabia que estava decretado o final da sessão.

Numa daquelas sessões mostrei à professora Maria Thétis Nunes os originais do meu polêmico estudo Historiografia Educacional Sergipana. Ela manuseou, leu alguns trechos e perguntou: “posso ficar com o texto para fazer uma leitura mais profunda?” Era tudo que eu desejava.

Uma semana depois, entre um e outro gole de uísque, ela puxou as páginas do meu texto de um envelope, me entregou e disse: “publique”. Em separado, três folhas de papel, em relação às quais ela comentou: “fiz um pequeno texto. Se você considerar que vale a pena, utilize como Prefácio. Aqui está”.

Nesta sexta-feira, seis de janeiro de 2023, celebramos os 100 anos de nascimento desta itabaianense que é, indiscutivelmente, o historiador mais importante de Sergipe em todos os tempos. Maria Thétis Nunes trabalhou como professora e pesquisadora ininterruptamente durante 64 anos, até morrer no dia 25 de outubro de 2009.

Publicou mais de uma dezena de livros, além de artigos e ensaios em revistas científicas. Concluiu o seu curso de graduação na Bahia aos 22 anos de idade. Na sua estreia como intelectual concorreu à cátedra de Geografia e História do Atheneu Sergipense com a tese “Os árabes: sua contribuição à civilização ocidental”, acerca da civilização árabe, na qual discutiu o Islamismo, a literatura árabe, a arte muçulmana, a Filosofia e a ciência árabes, além da influência muçulmana no Brasil.

Sou grato à vida por haver conhecido e convivido com tão singular intelectual. Nutro pela sua memória a gratidão de aluno, a admiração de colega do Departamento de História da UFS e a riqueza da troca de ideias com a confreira da Academia Sergipana de Letras e a amiga, uma espécie de irmã mais velha, que me recebia nas tardes de quarta-feira para duas doses de uísque e um cálice de vinho do porto.

Um brinde à memória de Maria Thétis Nunes.

 

 

*Jornalista, professor, doutor em História e Filosofia da Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

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