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O TIRO


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Baleadeira, atiradeira, baladeira, funda, badogue, badoque, bodoque, estilingue. Eram vários os nomes, mas o objetivo era somente o de atirar pedras em passarinhos, lagartixas, sapos ou acertar alvos os mais diversos. Matar e maltratar animais era brincadeira de criança. Na transição da infância para a adolescência os amigos invejavam a minha coleção da baleadeiras, todas construídas artesanalmente por mim.

A munição: pedras, bolas de gude, caroços de frutas, mamonas. Tudo que pudesse atingir um alvo e ferir os animais. E algumas vezes também as pessoas, principalmente nas emocionantes batalhas das guerras de mamona que os meninos protagonizavam e que marcavam o corpo dos menos hábeis.

A violência era parte significativa das brincadeiras, das práticas dos meninos. Às meninas, as bonecas. Aos meninos, os jogos de pelada nos quais todos, de pés descalços se estropiavam chutando a bola e junto com ela as pedras, os cacos de vidro, os tocos, os pedaços de madeira que feriam e cortavam os dedos e as plantas dos pés.

A violência era um elemento da educação masculina, da formação de menino macho.  Assim era a vida na década de 60 do século XX. Desenvolver qualquer tipo de sensibilidade era coisa de maricas. O cinema educava a todos, também com foco na violência. Os filmes preferidos eram os de faroeste, nos quais a cavalaria americana promovia uma ensandecida matança dos índios.

Cheyennes, Apaches, Navajos, Comanches, Blackfeets, Sioux, Oglalas, Hunkpapas, Sans Arcs, Minneconjous e Brulés. Claro que os meninos torciam sempre pela cavalaria, na sua missão de exterminar os pele vermelha. A regra era aplaudir o genocídio liderado pelo general George Armstrong Custer, chamado pelos índios de “Cabelos Longos”, comandante da Sétima Cavalaria.

Em 1867, o herói fardado morreu no Estado de Montana, cercado pelos índios, para indignação de todos os meninos brasileiros que viam os filmes produzidos em Hollywood. A corrida do ouro, a expansão das ferrovias em direção ao Oeste norte-americano, o crescimento das cidades. Tudo isto contribuía para o extermínio das nações índígenas.

E quando não era no cinema, as histórias eram narradas pelos gibis que costumávamos trocar na porta das salas de exibição de filmes, antes do início das matinês dos sábados e domingos no Cinema São Francisco, no Cine Veracruz, no Senhor do Bonfim, no Guarani, no Vitória, no Rio Branco, no Aracaju e no Palace.

Menino pobre que fui, sempre me frustrou a impossibilidade de ser proprietário de um revólver da Estrela, daqueles que povoavam o nosso imaginário e o dos adolescentes dos anos 50, 60 e 70 do século XX. Eram perfeitos, reproduzindo os modelos dos calibres 22 e 38 mais conhecidos à época. Algumas daquelas armas usavam espoletas, reproduziam o estampido do tiro, tornando tudo mais real.

A pobreza fez com que o campeão das atiradeiras, dos estilingues, das baleadeiras jamais tivesse a oportunidade de apertar o gatilho da réplica de um revólver 22 ou 38 com a marca Estrela estampada e o ruído que as espoletas produziam, enchendo de emoção o imaginário dos meninos.

A vida adulta chegou. Segunda metade dos anos 70. Pela manhã, as aulas do curso de Direito na Universidade Federal de Sergipe. À noite, as aulas do curso de Pedagogia na Faculdade Pio Décimo. À tarde, professor da escola pública estadual e, também as atividades de redator no Jornal de Sergipe.

Apesar da jornada cansativa, estava feliz. Tinha certeza de que os tempos, então, eram de plena prosperidade. Novos amigos, intelectuais eruditos, boas rodadas de conversa e a companhia da cerveja que se fazia cada vez mais presente. Convívio cotidiano com Luiz Antônio Barreto e José Carlos de Souza.

Este último era, então, o gestor da Diretoria Regional de Educação 6 – DR6, sediada em Propriá. Algumas vezes passei o final de semana na cidade ribeirinha, a convite daquele geógrafo amigo. Homem apaixonado pela natureza e dotado de curiosidade infinita. Sempre propunha passeios pouco rotineiros.

Por proposta dele, fomos pescar no rio São Francisco. A quem pertencia a canoa, não faço a menor ideia. Motor de popa, tipo rabeta. Os dois navegantes, de pouca ou nenhuma experiência. Nenhuma, no meu caso, bem entendido. Tarrafas embarcadas e linhas de fundo também. Farnel carregado com o lanche de bordo e, naturalmente, uma boa garrafa de Ron Montilla, à época o drinque preferido de ambos.

Embarcado, percebi a bordo uma espingarda de cartuchos, marca Rossi, calibre 16, muito conhecida dos caçadores, deitada no fundo da canoa. O Calibre 16, por ser mais barato, era o mais popular da arma, também chamada de Pomba. Contei ao amigo que, à época, com pouco mais de 20 anos de idade, nunca havia atirado com uma arma de fogo. Na infância, fora o melhor de todos no uso das baleadeiras. Com armas de fogo, nenhuma experiência.

Descemos o Velho Chico, em direção a Carrapicho, hoje Santana do São Francisco. Num ponto deserto do São Francisco, paramos próximo a um balseiro que boiava na correnteza, em frente a um bom barranco de areia nas margens. Zé Carlos, pacientemente, carregou a arma, colocou em minhas mãos e disse: é sua. Atire.

Eu nunca havia atirado com nenhum tipo de arma. Fiquei de pé na embarcação e com a mão direita segurei a espingarda, dedo no gatilho. Com a mão esquerda apoiei o cano, apontei para o barranco, braços um pouco flexionados e apertei o gatilho. Estampido ensurdecedor.

Não sabia que armas dão coice. Tomei uma pancada descomunal na clavícula. Assustado, de pé sobre a pequena embarcação, perdi o equilíbrio. A canoa balançou comigo. Zé Carlos, assustado, levantou-se e fomos ambos parar na água. Quando emergimos, o barco estava emborcado.

Para o fundo do rio foram a arma, as linhas de fundo e as tarrafas, o farnel com o lanche. O mesmo aconteceu com o motor de rabeta. Navegantes em pânico. Ficamos agarrados na borda da canoa. Uma embarcação de pescadores que estava um pouco mais acima veio em nosso socorro e nos resgatou.

A navegação fluvial perdeu dois ´promissores discípulos de Fernão de Magalhães. A minha carreira de atirador foi ali encerrada. Campanhas de desarmamento, desde então, contam com a minha entusiasmada presença e militância ativa, contrário que sou a todas as iniciativas armamentistas.

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, professor aposentado do Departamento de História, do Mestrado em História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

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