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O MENINO QUE VIU O GOLPE

                                                              João Goulart
 


 

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Alguma coisa fora do comum estava acontecendo naquela noite do 31 de março e naquela madrugada do primeiro de abril de 1964. Lá se vão 60 anos e o ambiente na casa da minha Vovó Petrina e da Tia Teresinha, onde eu morava, nunca me saiu da cabeça. A tensão estava no ar e permitia ao menino Jorge a percepção de alguma coisa fora do comum naqueles acontecimentos. Passamos a madrugada acordados.

Todas as luzes da casa foram apagadas, mas protegidas pelos dois postigos frontais da platibanda da nossa casa, entreabertos, ajoelhadas sobre duas cadeiras estavam a Tia Terezinha e a Vovó Petrina trocando entre si comentários incognoscíveis ao menino de sete anos de idade que somente no dia 28 de agosto daquele ano chegaria ao seu oitavo ano de vida.

O mesmo nível de incompreensão que se me impunha o som do pequeno rádio de pilhas japonês da marca Spica, modelo ST 600, um dos rádios transistorizados mais vendidos à época no Brasil. O radinho, com sua capa de couro marrom, era motivo de orgulho da minha modernosa Tia Teresinha, “alta funcionária” (como costumava jactar-se Vovó Petrina) do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários – IAPI.

Com o aparelho ligado na Rádio Liberdade de Sergipe, elas ouviam a transmissão das notícias que chegavam do Rio de Janeiro e aqui eram comentadas por Silva Lima e Santos Mendonça, titulares de dois programas imperdíveis naquela casa: Informativo Cinzano e Calendário. Silva Lima também mantinha semanalmente o programa Cada Crime Tem Sua História. Eles vararam a madrugada comentando as notícias do golpe militar e do que chamaram fuga do presidente João Goulart para o Rio Grande do Sul e posteriormente para o Uruguai.

O frenesi dos motores e dos freios dos jeeps do Exército cruzando a rua para cima e para baixo era intenso. Bem assim o barulho das botinas dos militares que batiam às portas de casas próximas da nossa. A rua do Bonfim ainda não era chamada de avenida Sete de Setembro. Menos ainda pela sua atual designação – avenida Mamede Paes Mendonça.

Todavia, aquela artéria cumpria uma importante ligação na vida da cidade de Aracaju: era o principal acesso à Estação Ferroviária, de onde partiam os comboios para Salvador, cruzando parte do Estado da Bahia, e, também para Propriá, onde após a travessia do rio São Francisco, feita em balsa, era possível continuar a viagem em outra composição até a cidade de Maceió.

Morávamos entre o morro de areia que é agora a avenida Pedro Calazans e a Estação Ferroviária. Nossa vizinhança era predominantemente composta por líderes da antiga Sociedade União dos Operários Ferroviários – SUOF, sindicato ativo e de intensa combatividade, no qual as principais lideranças militavam também no Partido Comunista Brasileiro – PCB.

Católica e muito conservadora, a Vovó Petrina ia diariamente à missa das sete da manhã na Igreja do Espírito Santo (avenida Simeão Sobral, no bairro Santo Antônio) ostentando a sua fita vermelha no pescoço, privilégio dos membros do Apostolado da Oração. Era anticomunista até a medula, e portava a certeza de que os membros do PCB pretendiam destruir as famílias e a fé católica.

Por isto, de olho grudado através do postigo, comunicava entusiasmadamente à Tia Teresinha o nome de cada um que era visitado pelos jeeps militares. “Graças a Deus levaram o bicho” – assim ela tratava os militantes do Partido Comunista que moravam em nossa rua, e, zelosa, quando andava comigo, não permitia que nossos pés pisassem as calçadas dos líderes ferroviários, ao seu olhar maculadas pela doutrina do marxismo.

A Tia Teresinha, com a cabeça mais aberta, mais ilustrada, ouvia o noticiário da rádio Globo do Rio de Janeiro, pelas ondas curtas do seu rádio transistorizado. Assinava a Gazeta de Sergipe e costumava receber jornais cariocas, como Última Hora, além de ser leitora habitual dos comentários e análises de jornalistas como Hélio Fernandes e Carlos Heitor Cony. Agora, olhando para trás, eu a classifico ideologicamente como uma discreta social-democrata.

Foi necessário que o menino Jorge crescesse, ingressasse na Universidade Federal de Sergipe e na Faculdade Pio Décimo, trabalhasse como repórter nos jornais Diário de Aracaju e Gazeta de Sergipe e redator da rádio e TV Atalaia, bem como da TV Sergipe para compreender claramente o que acontecera naquela noite que durou 21 anos.

O golpe militar de 31 de março de 1964 que agora completa 60 anos, depôs o presidente do Brasil, João Goulart, e alguns governadores estaduais, dentre os quais o de Sergipe, João de Seixas Dórea. Ranieri Mazzili substituiu o chefe do Poder Executivo, mas logo depois o Congresso Nacional referendou a escolha do marechal Humberto de Alencar Castelo Branco para a Presidência da República.

Castelo Branco governou editando atos institucionais e banindo da vida pública três ex-presidentes (Jânio Quadros, Juscelino Kubitscheck e João Goulart). O governador de Sergipe, João de Seixas Dórea, foi preso, além de governadores de outros Estados, igualmente banidos da vida pública e levados à cadeia, bem como milhares de cidadãos, políticos, intelectuais, sindicalistas e estudantes recolhidos ao xadrez de diferentes unidades das forças armadas que foram cassados ou tiveram os direitos políticos suspensos, boa parte deles submetida a maus tratos.

Somente no ano de 1964 foram computadas 203 denúncias de tratamento inadequado aos presos políticos. Os militares e os líderes civis responsáveis pelo golpe militar de 1964, principalmente aqueles ligados à União Democrática Nacional, a UDN, afirmavam que pretendiam restaurar a ordem no país, citando como exemplos mais graves da desestabilização nacional, o comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, que aconteceu no dia 13 de março, 18 dias antes do golpe.

Naquele ato, o presidente João Goulart assinou um decreto de reforma agrária diante de uma multidão estimada em 350 mil pessoas. Os golpistas relacionavam também a proposta apresentada pelo chefe do Poder Executivo ao Congresso Nacional, ainda no mesmo mês de março, com o objetivo de permitir a reeleição do presidente e a candidatura de parentes seus, produzindo a impressão de que ele próprio tentaria novo mandato ou, em outra hipótese, apoiaria a candidatura do seu cunhado, Leonel Brizola, o que era intolerável para os que divergiam do seu projeto.

Além disto, no dia 26 de março se iniciou uma rebelião dos marinheiros contra a prisão do cabo José Anselmo, detido quando tentava organizar uma associação de classe. Os marinheiros protestaram na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, mesmo com a manifestação proibida pelo comando da Marinha.

Os oficiais militares não esconderam a insatisfação com o fato de o Governo deixar de punir os rebelados por insubordinação, o que na prática representava uma quebra da hierarquia militar. O sentimento de revolta da oficialidade se agravou mais ainda no dia 30 de março, quando o presidente João Goulart e sete ministros de Estado compareceram a uma reunião promovida por suboficiais e sargentos na sede do Automóvel Clube do Rio de Janeiro em solidariedade àqueles que organizaram a rebelião dos marinheiros.

O menino daquela noite de 1964 tem agora 67 anos de idade e no dia oito de janeiro de 2023 estava “batendo papo” com amigos em uma área de lazer do condomínio onde mora. Poucos eram os meus vizinhos que, como eu, desconfiavam que Jair Bolsonaro vinha articulando a quebra da ordem institucional desde que perdera a eleição para Lula. Como parte do plano, fugiu para os Estados Unidos da América dois dias antes da conclusão do mandato.

Naquela tarde do oito de janeiro, quando começou a invasão da Praça dos Três Poderes, o clima entre os apoiadores de Bolsonaro era quase de orgasmo quando falavam uns aos outros – “começou a festa da Selma”. Felizmente, a festa foi abortada antes que as fanfarras da ditadura começassem a soar.

Que 1964 fique em 1964. Com todos os percalços, o Brasil continua a ser uma democracia.

 

 

*Jornalista, doutor em Educação, professor aposentado do Departamento de História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe. É membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

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