Jorge
Carvalho do Nascimento*
Esperar
pela última semana de junho para o reencontro com Orozimbo levava Sônia a viver
contando as horas. Para ela, os giros da terra em torno do próprio eixo e em
torno do sol eram muito lentos. Para quem ama e está distante do seu objeto do
desejo, um dia pode ter mais de 40 horas.
Passear
era uma das formas de esquecer o ritmo lento do passar dos dias. Em menos de 10
dias ela havia percorrido todo o Distrito de Cabedelo. O passo seguinte foi a
conquista de João Pessoa que, no primeiro semestre de 1933, fervilhava em obras
públicas que buscavam a sua modernização.
Sônica
venceu, viajando de trem, os 30 quilômetros que separavam o Distrito de
Cabedelo da sede histórica do seu município, João Pessoa. Desembarcou na
pomposa estação ferroviária da capital paraibana, repleta de janelas, numa
arquitetura que chamava a atenção de todos.
Tomou
um carro de aluguel e passeou pelas avenidas, praças e edifícios públicos mais
importantes da cidade, a exemplo do majestoso prédio construído para ser a sede
dos Correios e Telégrafos. De lá foi até a sede do Clube Astréa, acatando a
sugestão do Frei Fernando, da paróquia do Sagrado Coração de Jesus, em Cabedelo.
A
visita ao clube sediado em João Pessoa foi uma excelente surpresa para Sônia.
Ali começou a descobrir que a mulher tinha muitas oportunidades de praticar
atividades que ela imaginava serem exclusivas do sexo masculino. O Astréa era,
à época o único clube social paraibano que não fazia qualquer restrição ao
acesso de mulheres desacompanhadas.
Ali
se deu conta que para muitas mulheres da elite da Paraíba era normal dirigir
automóveis, usar as piscinas do clube para a prática de natação, e usar as
quadras para partidas de handebol, jogar tênis, voleibol e jogar futebol, o que
mais a assustou na visita àquele clube. Era um mundo completamente novo aquele
que Sônia estava descobrindo.
A
menina mulher resolveu ficar hospedada em um hotel de João Pessoa e à noite foi
ao Teatro Santa Rosa. No dia seguinte, depois do café da manhã, a visitante foi
conhecer a Igreja de Nossa Senhora do Carmo e o Palácio da Redenção. A paisagem
urbana, de fato era encantadora para qualquer visitante, principalmente para
aquela mulher recém-chegada de São José das Pombas.
Mas,
a crueldade da vida fez com que a visita à cidade de João Pessoa lhe lembrasse
um incômodo: a dificuldade de ser a outra. Lembrou-se que estava na cidade onde
morava o seu homem, o mascate Orozimbo, mas não poderia vê-lo. A cidade de João
Pessoa era o espaço da esposa e dos filhos, nunca o da concubina.
Antes
de sair de Cabedelo, Orozimbo recomendara a Sônia que, caso fosse passear em
João Pessoa, evitasse a Praça da Independência, onde ficava o palacete no qual
o mascate residia, nas proximidades de um outro palacete famoso no qual
residira o falecido líder político cujo nome fora adotado como designação pela
capital paraibana.
Sônia
pediu ao chofer que passasse pela porta do palacete pintado de azul e amarelo.
Na varanda, a portuguesa Manoela sentada em uma cadeira de balanço, servidas
por duas empregadas uniformizadas, com uma criança no colo que a amante de
Orozimbo presumiu tratar-se da pequena Rocio, a filha mais nova do seu amado.
Esta
era a realidade que lhe estava exposta: no espaço da família, a amante deveria
ser sempre invisível. A ela caberia sempre o espaço periférico do porto de
Cabedelo. A sua alma ciumenta fitou Manoela e imediatamente imaginou: como poderia
um homem tão refinado viver com uma mulher tão feia.
Afinal,
o papel de Sônia era mesmo o da concubina, conceito que carimbava a mulher de
modo pejorativo. Toda forma de união estável significava concubinato, e este
era o seu caso. Uma relação movida exclusivamente pelos desejos e impulsos da
carne, pelo sexo, pela libido. Os filhos havidos daquele relacionamento não
poderiam ser reconhecidos.
Era
a primeira vez que Sônia refletia sobre seu novo status de mulher, sobre a sua
condição social. Mesmo ruim, era bom, mas era ruim. Melhor que a vida que vivia
em São José das Pombas, nos confins paraibanos. Os filhos que ela tivesse com Orozimbo
seriam sempre espúrios.
O
seu segundo dia em João Pessoa estava chegando ao final. Seis da tarde deveria
embarcar no trem de volta para o seu Distrito de Cabedelo. Angustiada,
embarcou, sentou-se à janela e as lágrimas rolaram sobre as maçãs do seu rosto.
Pela primeira vez em sua vida, Sônia percebeu que era uma mulher que as pessoas
com as quais convivia tinham como alguém de posição inferior no mundo.
*Jornalista, doutor em Educação, professor aposentado do Departamento de História, do Mestrado em História e do Mestrado e doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe.
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