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A VIAGEM


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Em 1932, do Ceará até a Bahia, o maior temor dos que vivam em pequenas comunidades e, também dos que precisavam viajar pelas estradas, trilhas e caminhos era o de um eventual encontro com os cangaceiros do bando de Lampião. Isto era bem pior que o medo em relação aos animais que viviam na mata e nos pântanos e os outros riscos de uma longa viagem com uma tropa de mulas.

Um mascate como Orozimbo viajava transportando em mercadorias uma fortuna que seria suficiente para tornar rico qualquer homem que se apropriasse daquele estoque. Mascatear era um negócio muito arriscado e somente a providência divina seria capaz de proteger Orozimbo.

O clima entre o mascate e a sua Sônia era de arrulhos entre dois pombinhos. O casal estava efetivamente tomado pela paixão e viajavam lado a lado, cada um em sua mula, sempre de mãos dadas. A presença do negro Timóteo era a garantia da segurança, mas também o impedimento de maiores intimidades.

Discreto, Timóteo estava sempre vigilante, mas guardava certa distância que permitia ao casal conversar sem que suas juras de amor eterno fossem ouvidas. Beijos e alguns afagos eram trocados ao longo de todo o caminho. Faziam muitos planos para a vida que viveriam após a chegada em Cabedelo.

Ao final da tarde, sempre conseguiam um galpão em alguma fazenda, para dormir com um pouco mais de segurança e, também para repouso e alimentação das mulas. E assim foram atravessando aqueles caminhos durante sete dias e seis noites. Viagem cansativa, movida pelo fogo da paixão.

Aos 14 anos de idade, era a primeira vez que Sônia saía de São José das Pombas. E logo encarando uma viagem de tão longa distância para os padrões do seu tempo. Por isto, também do ponto de vista da paisagem era um momento de descobertas e encantamento, de ver que o mundo era bem maior do que poderia supor a sua imaginação.

Deslumbrou-se com as águas do Riacho Mucutu, e com o aglomerado de casas em São João do Cariri, com a Malhada da Roça e com Boa Vista. Ao seu olhar de menina que estava descobrindo o mundo, Cacimba Noiva, Catolé, Estreito e Lucas pareciam grandes metrópoles.

Os morros que subiu e desceu ao longo do caminho eram as mais importantes elevações que vira ao longo de toda a sua vida. Os rios, riachos e pântanos pareciam grandes mares e oceanos. Mas, nada se assemelhava a Campina Grande. Nunca imaginara em toda a sua vida que fosse possível existir uma cidade tão grande.

Campina Grande vivia um período de grande prosperidade econômica possibilitada pelos negócios do algodão que não parava de enriquecer os plantadores e exportadores da matéria prima. Sônia nunca tinha visto tantos automóveis e caminhões reunidos, jornais impressos sendo vendidos, casas bonitas, fachadas pintadas com cores alegres que destoavam do ocre do barro da sua São José das Pombas, tantos homens e mulheres tão bem-vestidos e elegantes.

A menina, criada num casebre de sopapo coberto de palha e piso em terra batida ficou perplexa quando chegou no quarto de hotel com Orozimbo. Nunca vira lençóis tão brancos nem camas tão largas com um colchão macio como aquele. O piso de ladrilhos e a parede bem pintada de branco chamavam a sua atenção.

O vaso cheio de água para o banho, sabão perfumado e toalhas brancas para se enxugar eram o máximo do luxo. Mesmo o banho de cuia que era possibilitado pelo hotel a impressionou. Nunca tivera tanta água à sua disposição. Que conforto. Algo impensável para quem vinha dos confins de São José das Pombas.

No restaurante, servido o jantar, o assombro foi ainda maior. Como pode tanta comida para somente três pessoas? Os pensamentos de Sônia estavam voltados para a miséria que fora sua vida em casa, ao lado da mamãe Valentina e de Ana, a sua irmã. Ao lado dos seus irmãos que naquele momento padeciam com rações limitadas de comida na frente de trabalho na qual estavam, no Ceará.

Sônia, Orozimbo e Timóteo diante de uma travessa cheia de salada com verduras e legumes, uma tigela de sopa, outra com feijão, mais uma com arroz, também uma com batatas fritas, farofa e, o ponto alto, uma grande travessa cheia de generosas peças de bife mal assado afogadas em abundante e apetitoso molho.

Cansados da viagem, comeram até se fartar. Surpresa! Os garçons recolheram a mesa e serviram compotas de doces caseiros. A sobremesa valia por uma outra refeição, mas os raros sabores da ambrosia, do doce de putas (assim era conhecido o doce de bananas em calda, com as bananas cortadas em rodinhas), do doce de mamão verde, do doce de jenipapo, era o estímulo para que todos provassem de tudo.

Barrigas pesadas, hora de se recolher e dormir. Timóteo em seu quarto. Sônia e Orozimbo, enfim sós. Cansados e de bucho cheio dormiram abraçados mal se deitaram, antes das nove da noite. Sônia, tomada pelo desejo, foi a primeira a abrir os olhos, por volta das três da madrugada. Começou a cobrir de beijos o seu amado mascate.

Ao nascer do sol, a menina de 14 anos estampava no rosto já um sorriso de mulher bem-amada. Estava feliz. Descobrira que sexo era bom. A virgindade ficou para sempre naquele lugar.

 

 

*Jornalista, doutor em Educação, professor aposentado do Departamento de História, do Mestrado em História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe. É membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

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