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O BAZAR DE DONA CLARICE


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

As quatro tochas da porta do Bazar de Dona Clarice eram acesas pontualmente na hora do Angelus, às seis da tarde. Alzirinha, fiel escudeira da proprietária do rendez-vous, era responsável pelo ritual. O resistente pavio era colocado num vaso de zinco cheio de gás.

No mesmo horário, as oito meninas da casa já estavam reunidas na varanda e todas juntas rezavam a oração do Angelus, puxada sempre por Dona Clarice ou por Alzirinha. Agradeciam ao criador por estarem vivas e pediam proteção para a saúde de todas e de cada uma.

Rezavam também para Santa Margarida de Cortona, protetora das prostitutas, e algumas vezes pediam a São Gonçalo do Amarante que guardasse aquela casa. No nicho colocado no quarto de Dona Clarice, estavam as duas imagens – a do santo português e a da santa italiana.

A oração era breve e logo as meninas saíam cada uma para o seu quarto, onde pintavam o rosto, se arrumavam e voltavam para o salão, a fim de aguardar os clientes que não tardariam a chegar. Alzirinha retomava a sua tarefa de acender as seis placas de querosene que iluminavam o salão, mas mantinham uma certa penumbra bucólica.

Alzirinha trabalhou como cozinheira no Sobrado da Várzea, até que o Coronel Garcia se apaixonasse por Clarice, a loira que chegara a São José das Pombas e por lá se arranchou na Fazenda Brejo Raso até o dia em que Dona Mirian, a esposa do Coronel, que raramente andava pela propriedade rural, ali chegou soltando fogo pelas ventas e determinando que Clarice fosse retirada imediatamente das suas terras.

O Coronel Garcia comprou uma malhada distando meia légua da povoação e ali construiu a confortável morada que ficou conhecida como Bazar de Dona Clarice. A casa era um chalé com pé direito alto, toda avarandada, coberta com telhas de barro, piso em tijolos cozidos, duas salas amplas, uma cozinha grande com dispensa e um fogão a lenha dotado de forno.

Afastada da casa, por cerca de 10 metros, uma construção quadrada, coberta de palha. No seu interior, um buraco de um metro por um metro e meio, atravessado por dois troncos de coqueiro lavrados em um lado, a fim de oferecer bom apoio para os pés. Era a moderna instalação sanitária, onde se tornava possível descomer e desbeber com relativo conforto, de acordo com os padrões sanitários vigorantes naquele fim de mundo.

Clarice servia de pasto à lascívia do Coronel Garcia. Alzirinha cuidava da limpeza da casa e, com as suas habilidades culinárias, mantinha a mesa sempre bem servida. Naquele lugar, o Coronel Garcia e Dona Clarice viveram por dois anos um amor tórrido até que, em comum acordo, resolveram que a paixão estava se esvaindo.

Generoso com a mulher que tão bem lhe saciara os desejos da carne, o Coronel Garcia propôs a Clarice que esta abrisse o negócio para diversão dos homens endinheirados da povoação e dos seus arredores. Fez a adaptação da casa e a ampliou construindo um chalé contíguo, com 10 quartos.

O negócio deu muito certo e, em pouco tempo, Dona Clarice era uma mulher próspera e de muitas posses. Desde o primeiro dia em que abriu as portas do estabelecimento, o sanfoneiro Zé de Marcos estava todas as noites puxando o fole do seu instrumento e encantando com o som das polcas, das rancheiras, maxixes, tangos e de alguns choros.

Tudo naquele ambiente pareceu estranho a Ana e Sônia. Mas, aquele era o espaço no qual foram colocadas pelo Coronel Garcia. Logo descobriram que servir às mesas e trabalhar na cozinha era a parte mais simples do acordo que fizeram. Difícil mesmo era tolerar as grosserias verbais e de comportamento dos homens que frequentavam o local.

As meninas que viviam no Bazar procuraram oferecer orientação às recém-chegadas. Mostraram-lhes a importância de aceitar o convite para um trago e sentar-se à mesa com os clientes. Ensinaram-lhes que pedir e estimular que os fregueses também pedissem vermutes e conhaques caros era essencial à garantia de um bom faturamento.

Acima de tudo, aprenderam a importância de disfarçar o asco e aprender a beijar a boca de homens que passavam muitos dias sem limpar os dentes, portadores de hálito de gambá. Também era daquele tipo de negócio sentar-se ao colo dos fregueses e fingir que não estavam incomodadas com as mãos nas coxas e a amolegação dos peitos.

Agora aquele era o novo mundo que lhes restava. As duas irmãs eram carne nova e atração da casa, também pela condição de virgens que ostentavam. Nos primeiros dias de trabalho foram muitos os convites para deitar-se que receberam. A todos recusavam, mas vigilante, Dona Clarice não cansava de informar a todos – “a inauguração, por direito, pertence ao Coronel Garcia”.

Mesmo mantendo a castidade, Ana e Sônia terminaram se ajustando às regras do jogo e receberam gordas gratificações nos primeiros 15 dias. Todavia, continuaram assustadas. Na primeira folga, quando chegaram em casa, o susto foi de mamãe Valentina – nunca vira tanto dinheiro quanto o que as filhas lhe entregaram.

 

 

*Jornalista, doutor em Educação, professor aposentado do Departamento de História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

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