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A MORTE DE OROZIMBO


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento

 

 

Mesmo tendo conseguido um trabalho como faxineira na Casa Ferreira, uma movimentada loja de ferragens localizada na Praça José Bonifácio, de propriedade do abastado comerciante Francisco Pinto Ferreira, Sônia continuava a viver sob muitos sacrifícios A ela cabia fazer a limpeza dos escritórios e servir água e café aos clientes e representantes comerciais que o dono da empresa costumava receber.

O tempo estava fazendo bem a Sônia. Já no segundo semestre de 1937, a sertaneja, então aos 18 anos de idade, estava se recompondo e livre das marcas que a gestação deixara em seu corpo. Os resquícios de barriga desapareceram e ela voltou a ser aquela morena bonita, esbelta, de ancas largas, peitos fartos, bunda grande, pele de cor bem assentada, com coxas e pernas grossas e roliças, muito bem torneadas.

Voltara a atrair a atenção dos homens e se fartava ouvindo galanteios, o que muito lhe agradava, mesmo fingindo não ter interesse e não prestar atenção nos gracejos masculinos. O sisudo comerciante Pinto Ferreira somente lhe dirigia a palavra para ordenar que servisse café e água para si e para os seus convivas ou quando desejava que ela fizesse algum serviço de limpeza. Para Sônia foi uma surpresa a interpelação que recebeu do patrão no início do mês de outubro:

- Dona Sônia, tenho uma curiosidade. Como a senhora veio parar em João Pessoa? De onde a senhora é? Onde a senhora vive? Como é a sua família?

- Seu Ferreira: eu vivia em Cabedelo antes de mudar para João Pessoa. Trabalhava como secretária da Casa Paroquial da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, mas lá teve uma confusão muito grande. Mataram um padre e um desembargador. Por isto eu decidi procurar trabalho aqui em João Pessoa. Me disseram que aqui tem mais oportunidade – revelou Sônia.

- Eu bem que andava desconfiado de você. É a morena que arruinou a saúde e as finanças do meu amigo Orozimbo. Ainda não tem dois meses que ele morreu. Preso numa cama. O couro e o osso. Ficou cego e a mulher dele, a portuguesa, pegou o dinheiro e foi embora num vapor pra Portugal com as filhas. Ele foi abandonado, pobre, pela família e morreu sozinho, vivendo da caridade dos amigos. Gastou com você, deu casa arrumada, comida e roupa lavada e foi chifrado por você. Eu preveni o meu amigo que o que quebra o homem é jogo, sítio pequeno e rapariga sem moral como você é. Amanhã você procure Seu Vitor, meu tesoureiro. Ele vai lhe pagar o que a firma lhe deve dos dias que você trabalhou este mês e nunca mais me apareça por aqui. Minha vontade é denunciar você à polícia e deixar você mofando na cadeia – disse irado o comerciante Ferreira.

Aquilo tudo deixou Sônia aterrorizada, atônita. Sem dizer uma só palavra, apanhou suas coisas e foi embora, depois de 10 meses trabalhando na Casa Ferreira. Por medo de que Francisco Pinto Ferreira cumprisse a ameaça e a denunciasse à polícia como causadora da morte de Orozimbo, Sônia não voltou sequer para receber o valor correspondente a uma semana de trabalho no mês de outubro.

O que ganhava na Casa Ferreira era muito pouco, quase nada. Mas ajudava com as despesas da casa e da manutenção de Eleutério. Mesmo trabalhando, Sônia percebia que suas finanças definhavam aceleradamente. Gastara tudo que possuía em valores depositados no banco e agora estava atravessando uma fase na qual começara, aos poucos, a vender as joias que possuía.

Sabia que era submetida a extorsão cada vez que precisava vender uma peça de ouro, de prata ou uma joia com pedra preciosa, mas era assim que vinha conseguido se manter viva e arcar com as despesas de Eleutério que não eram poucas. O valor que recebia pelas suas joias era sempre aviltado pela avareza dos ourives e dos agiotas. Tinha que conseguir um outro trabalho, fosse de que tipo fosse.

Sônia sonhava em descobrir um cabaré que a aceitasse para voltar à prostituição. Quem sabe, conseguiria um homem rico que se encantasse com ela e lhe proporcionasse o retorno a uma vida farta com a manutenção de todas as suas necessidades, moradia digna e ainda uma boa quantia todos os meses. Mas, por enquanto, isto era sonho.

A sua realidade era a compra de alimentos para a sua casa todas as semanas, o pagamento da sua parte no aluguel da casa, o valor da taxa mensal que entregava ao Lar dos Pequeninos todos os meses para que as freiras continuassem a cuidar de Eleutério, os medicamentos que o seu filho precisava tomar e o vestuário do menino que crescia rapidamente.

Após perder o emprego e se retirar da Casa Ferreira, Sônia voltou para a sua residência e ficou aguardando o horário de ir ao Convento buscar Eleutério. Outra vez a refletir a respeito da desgraça que se abatera sobre a sua vida e agora, estava ainda pior por haver tomado conhecimento da morte do seu Orozimbo, o amor que desprezara.

O remorso se abateu sobre a sua consciência e Sônia incorporou o pressentimento de que carregaria tal fantasma durante toda a sua vida. O modo como cada um de nós existe não admite ensaios. É impossível retroceder e fazer as coisas sem cometer erros. Sônia, tão jovem, estava vergando sob o peso dos erros que cometera e das maldades que impingira ao único homem que lhe dera provas de ser efetivamente apaixonado por ela.


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