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DOCE DE PUTAS


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento

 

 

O desembargador chegou com sempre por volta das quatro da tarde. Sorridente, vestido com elegância e pronto para uma nova tarde-noite de orgias com Sônia. Ela, como acontecia habitualmente, depois dos abraços e beijos foi até a sala de jantar, onde abriu o atager e pegou as tigelas pequenas de vidro decoradas em baixo relevo, garfos e colheres de sobremesa em prata e guardanapos de linho branco.

Abriu a compoteira que estava sobre o atager e com uma colher de sopa colocou duas porções generosas de doce de banana em calda, cortado em rodelas, em cada uma das tigelas. O conhecido e afamado doce de puta, como sempre foi chamado tradicionalmente no norte do Brasil.

Elífio, sentado à mesa, acompanhava a movimentação da cortesã. Surpreso, ouviu um soluço profundo e o ruído provocado pelas contrações do esôfago seguidas por uma forte regurgitação. As náuseas produziram um vômito que sujou a roupa de Sônia e emporcalhou o piso da sala.

Ela correu para o banheiro, limpou o rosto, lavou a boca, tirou a blusa e a saia e voltou para o quarto. Vestindo roupas limpas retornou à sala, tomou uma vassoura e um pano de chão e deu cabo da sujeira rapidamente. Impávido, sentado em uma cadeira na cabeceira da mesa, o magistrado permanecia em silêncio.

Sônia sentou-se à sua esquerda e ensaiou um pedido de desculpas.

- Você emprenhou? – foi a pergunta de Elífio.

Sônia baixou a cabeça e acenou que sim. O desembargador perdeu o equilíbrio.

- Você é uma vadia. O menino é meu, do Frei Fernando ou do Padre Galo? Eu sou um homem de respeito, um membro do Poder Judiciário, sou casado e tenho uma família de bem. Não posso ficar exposto por causa de uma vagabunda irresponsável nem ser apontado como pai de um bastardo. Isto vai me criar problema na Justiça e, pior ainda, na minha família. Com que cara eu vou olhar pra minha esposa, a mãe dos meus filhos? – berrava o magistrado. Levantou-se e saiu trotando pela casa. Parou diante da porta e vociferou:

- Trate de tirar essa criança do seu bucho. Dê seu jeito. Pode abortar. Eu sou um juiz e ninguém vai acusar você de ter cometido crime nenhum. Isto eu posso garantir - bateu a porta e, soberbo, saiu da casa em passos acelerados, buscando a praça na qual o seu motorista ficava descansado enquanto aguardava a hora de levá-lo de volta.

Na manhã seguinte, Dadá encontrou Sônia prostrada na cama com a mesma roupa e os sapatos que usava no dia anterior. O rosto inchado de chorar e ela muito debilitada. A preta sentou-se na cama ao lado da sertaneja e comentou:

- Já sei. O doutor juiz descobriu a sua barriga. Agora, sua situação ficou muito difícil. E agora? O que você vai fazer? – perguntou Dadá.

- Vou fazer um aborto – respondeu.

Parteira e aborteira, Dadá sabia que a prática abortiva constituía crime punido pela lei. E tinha suas ideias sobre o assunto.

- Eu acho que mulher não deve conhecer homem muito cedo. Só faz besteira. Agora, você tá aí derrotada. Mulher tem que saber controlar a carne. Só devia conhecer homem quando chegasse perto dos 30 anos, a idade certa pra se casar – refletia em voz alta. Normalmente as meninas paraibanas se casavam antes dos 18 anos de idade e aos 20 já tinham dois ou três filhos.

- Sou contra mulher, mesmo mulher da vida como você, se deitar com homem casado. A confusão é grande. O problema de mulher abrir as pernas é arranjar filho. O resto é bom. Depois, menina nova não gosta de ouvir os meus conselhos. Eu vivo dizendo a todas as meninas da sua idade. Nunca deixe homem gozar dentro. Na sua idade, é barriga na certa. Acabou, o homem amoleceu, vá direto lavar a camarinha. Se tirar a gala, não pega barriga. E se pegar, só tem um jeito que é o aborto, tirar o menino de dentro na marra. O perigo é quando a polícia descobre, quando alguém denuncia – disse Dadá.

Na conservadora sociedade paraibana, como de resto em todo Brasil, aceitar relações sexuais quer não se destinassem a procriar, era muito difícil. O moralismo dos médicos, junto com o da Igreja Católica, combatia com afinco as relações sexuais destinadas ao prazer. Isto era coisa de prostituta, nunca de uma moça ou mulher de família.

No mundo de Sônia, nenhum estranhamento que o homem procurasse as vendedoras de sexo, as cortesãs, como era cada vez mais o perfil que a sertaneja vinha assumindo. Uma mulher como ela levava algumas vantagens. Tinha um bom padrão de vida, se cuidava e era asseada. Isto afastava temores como o risco de ter sífilis, que poderia prejudicar a esposa e os futuros filhos que tivesse no casamento.

Consciente da realidade social que cercava uma mulher como Sônia, Dadá que gostava muito dela, se dispôs a ajudá-la.

- Você já vive humilhada pela sociedade, apesar de ter dinheiro. Quando a sua gravidez for descoberta, tudo vai piorar ainda mais. Eu vou ajudar você a fazer o aborto. Tá no começo e assim é mais fácil de tirar. A gente pode começar fazendo sangria, usando sanguessuga. Se não funcionar, a gente vai por outro caminho – afirmou a preta Dadá.

Não deu certo e Dadá sugeriu que fizessem banho de assento. Durante dois dias, Sônia fez oito banhos de assento. Bacia cheia com água morna, quase quente, a sertaneja nua se sentava na água com a vagina imersa por cerca de 10 minutos de cada vez. A terapia também fracassou. Dadá prometeu pensar em outras soluções.

Sônia estava em pânico...


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