Jorge
Carvalho do Nascimento*
Desde
dezembro daquele ano de 1933, as visitas de Orozimbo se transformaram em
encontros de afeto entre amigos, mais que amigos, entre irmãos, talvez pai e
filha ou, se quisermos, avô e neta. Ele sempre levava muitos presentes para
Sônia e antes de ir embora nunca esquecia de deixar na gaveta da cômoda do
quarto um envelope saco amarelo com a gorda pensão que ela recebia todos os
meses, desde que chegara a Cabedelo.
Era
uma semana inteira de carinho, coisa que acontece entre pai e filha quando
estes passam muitos dias distantes um do outro. O automóvel de aluguel deixava
Orozimbo na sua porta sempre por volta das oito e meia da manhã, poucos minutos
após a chegada do trem na Estação Ferroviária de Cabedelo.
Ele
encontrava a casa sempre alegre, bem decorada, com muitas flores, como gostava.
Sônia servia refeições fartas em mesa bem arrumada no café da manhã, no almoço
e no jantar. Pela manhã, ele sentava-se numa cadeira de balanço de palhinha, a
sua preferida, e Sônia lia para ele os clássicos da literatura.
No
tempo que ficou em Cabedelo, Sônia empregou bem o seu tempo lendo livros. Mesmo
sem ter cumprido o ciclo de escolarização que a sua idade possibilitava
terminou se transformando numa leitora voraz. O seu amigo Frei Fernando a
abastecia com bons livros dos clássicos brasileiros e estrangeiros.
Ler
era uma boa forma de diversão, um modo de ocupar o tempo, de preencher o ócio
com dignidade. É possível afirmar que durante as visitas de Orozimbo a leitura
se transformou na brincadeira predileta do casal. Ou, talvez, na brincadeira
possível, seria um modo mais adequado de falar da realidade.
Aquilo
que no outrora fora o brinquedo predileto deles agora era um molambo que jazia
inerte sob as calças do mascate. Só servia para criar problemas, já que estava
sempre pingando na roupa em razão da incontinência urinária que ninguém
conseguia controlar e deixava Orozimbo com aquele insuportável bodum de ureia.
A
roupa do mascate, outrora bem perfumada, agora exalava um cheiro de carne verde
estragada, fedor de entranhas, como se o sujeito tivesse já o corpo em processo
de putrefação, antes mesmo de haver sido convocado pelo criador para a
prestação de contas do juízo final. Para alguns, o processo de envelhecimento é
cruel.
A
necessidade é a mãe de todas as formas de adaptação. Sônia recordava sempre de
como fora sua vida antes de conhecer o espanhol cigano. De nada reclamava, mas,
intimamente, muitas vezes percebia que o seu estômago estava começando a ficar
embrulhado com a degradação física do corpo do seu amado.
Os
dias e as noites passaram a se arrastar lentamente na última semana de cada
mês. Ela ficava o tempo inteiro em casa fazendo companhia àquele que já fora o
seu homem tão desejado. Enquanto ele a visitava, ela não frequentava sequer a
missa como fazia habitualmente. Torcia para que chegasse logo o dia da partida
de Orozimbo.
Alegre
mesmo, Sônia ficava no dia que o mascate voltava para João Pessoa e ela
retomava a sua rotina. Missa às oito da manhã, passeios de charrete pelas praias
com o Frei Fernando, a partir da 10 e à tarde e nas noites as conversas sem fim
sobre coisas da Igreja, da vida e do mundo mundano. O Frei Fernando a contratou
como secretária da Paróquia. Eles estavam juntos todos os dias.
Eram
mais que amigos, bons confidentes. Os passeios pelas praias de Cabedelo se
tornaram um vício. Todas as manhãs, a cada dia, uma praia diferente. A exceção
eram os dias de chuva. Eles ficavam na Casa Paroquial tratando dos negócios da Igreja
e de outros negócios que interessavam a ambos.
Os
dias de sol eram uma festa para os dois amigos. A Praia do Jacaré era um dos
passeios de maior predileção. A foz do rio Paraíba, os jacarés que habitavam a
região e ficavam nas margens tomando sol, a densa e variada vegetação da Mata
da Bocaina e a sua rica fauna, principalmente os pássaros que não paravam de
cantar. Tudo isto produzia um ambiente bucólico e muito romântico.
Mas,
é inegável que a Ponta de Campina era uma praia muito mais sossegada. Se o
Jacaré era um balneário conhecido por poucas pessoas, a Ponta de Campina era o
lugar mais tranquilo, de maior sossego, onde não havia nenhuma possibilidade de
encontrar com qualquer outro humano. Os dois amigos tinham toda aquela praia
para si.
O
Frei Fernando fora pela primeira vez à Praia do Almagre acompanhado por Henrique,
o caboclo. Atendera recomendação de Dom Moisés Sizenando Coelho, durante muitos
anos Arcebispo-Coadjutor de João Pessoa. Fora em busca da antiga Igreja de
Nossa Senhora de Nazaré, conhecida como Igreja do Almagre.
Eram
ruinas encravadas no meio do mato onde no século XVII existira um convento dos
padres Jesuítas, ocupado pelos Franciscanos no século XVIII, depois da reforma
da Companhia de Jesus que expulsou do território de Portugal e suas colônias os
padres inacianos. Dom Moisés pretendia restaurar o templo. Frei Fernando
relatou não valer a pena, por falta de fiéis naquela região. O telhado e as
paredes do convento tinham desabado muitos anos antes e não havia mais nenhum
interessado em frequentar aquela Igreja.
Frei
Fernando levou Sônia para conhecer as ruínas. Contou várias histórias acerca de
como fora ver aquele lugar mágico na primeira vez que ali esteve. Disse-lhe que
gostava de tomar banho de mar naquela praia e que se estivesse sozinho naquela
visita teria entrado no mar, pois considerava a água salgada revigorante.
Sônia
viera da fronteira da Borborema com o Cariri e nunca o prazer de um banho em
água salgada. Falou da curiosidade que tinha. Contou ao Frei Fernando que não
via problema em banhar-se. Tiraria o vestido, mas seu corpo estaria protegido
pelo camisão comprido que usava por baixo.
O
frade contou que neste caso ele estava usando ceroulas de cambraia e não via
nenhum mal em molhar o corpo naquelas águas que faziam tanto bem à saúde. Nada
mais seria do que um banho inocente. Sônia tirou o vestido e depois de dobrá-lo
cuidadosamente descansou a peça sobre o banco da charrete. A batina do Frei
Fernando foi parar no mesmo banco ao lado do belo vestido da amiga.
A
emoção que sente alguém que tem a pele sob a água do mar pela primeira vez é a
de ter conhecido a felicidade plena. Dá um frio na barriga como estrear em uma
gangorra ou dar uma volta em uma roda gigante. São prazeres que estão sempre
associados ao perigo, Tudo faz crer que os perigos são a maior das fontes de
prazer.
Sônia
mergulhou. O Frei Francisco era experiente frequentador das praias de água fria
do Mar do Norte, desde que estivera no convento Franciscano em Hamburgo, na sua
Alemanha. Ele também submergiu nas águas da Praia do Almagre. Ao voltar à tona,
ficou chocado com a cena que estava diante dos seus olhos.
A
última vez que vira com perfeição um corpo de mulher fora no início da sua
puberdade, nos anos em que observava às escondidas os banhos da sua tia Sabine,
irmã mais nova da sua mãe que vivera em sua casa depois que ficou órfã de pai e
mãe, mortos em um acidente.
A
tia Sabine fora responsável pela sua primeira polução noturna. Depois de vê-la
num banho, impossível não sonhar com aquela pele leitosa de mulher que cobria
formas tão perfeitas e tão sedutoras de tudo que então lhe era ainda proibido e
que continuaria a ser assim pelo voto de castidade que permitiu a sua ordenação
sacerdotal.
Sônia
encantava muito mais que a tia Sabine. O pensamento do frade viajou para muito
longe. A pele da cor de jaboticaba brilhava como se houvesse ali um verniz
muito forte que refletia a luz com muita intensidade. A água do mar molhou a
cambraia do camisão que colado ao corpo se tornou transparente revelando a
perfeição das curvas de mamão de cheiro das tetas de Sônia.
E
o que dizer da barriga ausente daquele corpo perfeito e bem torneado? O Frei
Fernando não parava de imaginar. Nunca vira ancas torneadas com tanto esmero e
muito menos conhecera curvas que definissem tão bem uma derriére.
Impossível evitar que seus olhos chegassem às coxas. A perfeição existe – não parava
de pensar o franciscano alemão.
As
ceroulas do Frei Fernando, também costuradas em cambraia de linho, molhadas não
conseguiram esconder o modo como o corpo jovem prelado reagiu. Os olhos da moça
se fixaram sobre a protuberância fálica muito saliente. O frade virou-se de
costas e Sônia se encantou muito mais. Quantas saudades. Como tudo aquilo lhe
fazia falta.
Vestiram
as roupas, se acomodaram na charrete e retornaram. Sônia pediu ao Frei Fernando
para deixá-la em sua casa. Fizeram todo o trajeto sem trocar uma única palavra.
O pensamento pecaminoso dos dois amigos nunca processou tanta informação, nunca
imaginou tantas situações, nunca sufocou tanto desejo.
*Jornalista, doutor em Educação, professor aposentado da Universidade Federal de Sergipe. Membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.
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