Jorge
Carvalho do Nascimento*
Como
fazia diariamente, Henrique, o caboclo que trabalhava como zelador, abriu as
portas da cozinha da Casa Paroquial pontualmente às cinco da manhã. Juntou a
lenha, abasteceu o fogão e acendeu o fogo. Quando a preta Alba, a cozinheira,
chegou, às cinco e meia, ele já havia ralado o milho do cuscuz, colocara os
pães no forno, a água de coco na jarra e fora ao curral do Zé Bernardo buscar os
dois litros de leite que este ofertava ao padre todas as manhãs.
Alba
preparou a massa do cuscuz, colocou no fogo, fritou os ovos e a carne de sol e
começou a passar o café no coador. Os aromas do cuscuz e do café invadiram as
narinas do Frei Fernando que estava acordando. Este apanhou a toalha, o
sabonete, o galho de Joá que servia para limpar os dentes, uma muda de ceroulas
que usava por baixo da batina e se dirigiu ao quarto dos fundos da casa que
servia de banheiro.
Parou
na cozinha, deu bom dia e orientou a preta Alba: arrume a mesa de um modo
especial. Temos visita hoje no café da manhã. Dona Sônia dormiu aqui na Casa
Paroquial e vai sentar-se à mesa conosco. Alba arregalou os olhos e foi direta:
o senhor vai botar uma quenga na sua mesa?
Frei
Fernando contou até 100, recompôs o sistema nervoso e respondeu com energia à
sua funcionária: por quem me tomas tu? Dê-se ao respeito. Aqui é uma casa da
Igreja Católica e eu sou o pároco desta cidade. Não vou tolerar novamente esse
tipo de coisa. Virou-se e seguiu sua marcha em direção ao banho.
Quando
retornou, a mesa estava posta com toalha de linho branco, guardanapos de linho
com a mesma padronagem de renda, pratos e xícaras de boa porcelana inglesa,
talheres de prata e taças de cristal. Um luxo só. Tudo contrastava com a cara
de poucos amigos da preta Alba que, àquela altura, já havia contado a novidade ao
zelador Henrique.
O
Frei Fernando foi direto ao quarto onde Sônia dormia. Segurou sua mão e, com
voz calma e macia simulando um sussurro, cuidou de acordar a sua hóspede. Ele
havia trocado a sotaina cheia de poeira do dia anterior por uma batina nova,
limpinha, cheirosa, retirada do gavetão naquela manhã.
Sônia
foi orientada a ir ao quarto dos fundos fazer a sua higiene matinal. Passou
pela cozinha e dirigiu cumprimentos alegres e sorridentes a Henrique, o
caboclo, e à preta Alba. Ambos baixaram a cabeça e nenhum dos dois se dignou a responder
aos cumprimentos que receberam.
Sônia
seguiu seu caminho e retornou asseada. Foi ao quarto, prendeu os cabelos e
encontrou, na sala de jantar, o Frei Fernando sentado à cabeceira. Este a
convidou a sentar-se à sua direita e, também ofereceu assentos à sua esquerda
para os dois empregados da cozinha. Era hábito destes fazer a refeição matinal
à mesa com o pároco. Naquele dia alegaram que ele havia se demorado e por isto já
tinham feito a refeição.
Quando
o desjejum se encerrou eram sete horas e 40 minutos. As pessoas estavam
chegando ao templo para a missa das oito que o Frei Fernando celebrava de
domingo a domingo. Sônia entrou no templo pela porta que ligava a Casa
Paroquial à sacristia e ao altar.
As
beatas perceberam aquela entrada inesperada e a Igreja virou um buxixo só, um
vozerio abafado com as mulheres cochichando umas às outras e especulando acerca
do que fazia nos aposentos do Frei Fernando aquela mulher da qual todas
suspeitavam sobre suas origens e acerca do modo pelo qual ganhava a vida e
vivia com tanto conforto.
Sentada
no primeiro banco, Sônia fingia não tomar conhecimento de nada que estava
ocorrendo na Igreja. Como se ela não tivesse absolutamente nada a ver com os
comentários que, àquela altura estavam correndo já pelas ruas e se transformando
em um dos principais assuntos dos cabedelenses.
Encerrado
o serviço religioso, Sônia permaneceu imóvel, sentada no lugar que ocupara
durante toda a missa. Quando ela era a última pessoa presente na Igreja, o Frei
Fernando veio encontrá-la. Mostrou a Sônia que ela não deveria se preocupar com
aquele tipo de comentário e que aquilo passaria rapidamente.
Como
acontecia todas as manhãs depois da missa, a égua Elânia estava arreada e
pronta para puxar a charrete macia que o Frei Fernando usava para se deslocar
em Cabedelo. Prometeu a Sônia que a conduziria até a sua casa. Sentaram-se um
ao lado do outro no banco estofado da charrete e saíram em direção à casa da
moça.
Mal
começaram a jornada, o Frei Fernando, sempre gentil lembrou que a sua amiga era
apaixonada pelo mar e amava passear nas praias de Cabedelo. A convidou para uma
visita à Praia do Mar de Macaco. Demorava cerca de 40 minutos até lá, sem muita
correria, viajando em marcha de passeio.
Conversaram
muito sobre a vida durante o trajeto. O Frei Fernando lhe contou que era filho
único de pai cervejeiro e mãe que produzia queijos temperados. Na praia,
desmontaram da charrete e passearam pelas areias, contemplando o coqueiral e as
tartarugas marinhas que tinham acabado de nascer e corriam em direção ao mar.
*Jornalista, doutor em Educação, professor aposentado do Departamento de História, do Mestrado em História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.
Que maravilha! No seu texto percebo nitidamente duas divas, a Literatura e a História. Que perfeito casamento, quanta harmonia nesse casal.
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