Jorge
Carvalho do Nascimento
Viver
é o maior dos perigos que a vida impõe. Quando alguém percebe que começou a era
da sua decadência, está na hora de fazer alguma coisa, de erguer as próprias
barreiras. Sônia, em poucos anos, saiu da mais absoluta miséria para uma vida
de opulência, morando em casa boa, bem mobiliada e confortável. Seu dia a dia
era muito abastado.
Agora,
ela percebia que novamente a foice da miséria estava roçando perto das suas
pernas. Pressentia que da opulência a um novo período de miséria, tudo
aconteceria numa velocidade muitas vezes superior àquela com a qual fizera o
caminho inverso, tendo se transformado numa mulher que vivia uma vida cheia de supérfluos
e muito luxo.
Chegara
ao Varadouro com um patrimônio razoável quando se considerava o que conseguiu
apurar com a venda da casa, mesmo tendo sido extorquida. A isto se somava o seu
patrimônio em joias que não era pequeno. E mais o dinheiro que conseguira
juntar com o que recebia de Orozimbo e no curto período em que foi presenteada
e remunerada pelo desembargador Elífio.
Mas,
o seu problema era de liquidez. A torneira das receitas fora fechada. A das
despesas, mesmo reduzida, continuava a sangrar a sua poupança e ela sentia que
o dinheiro iria acabar em pouco tempo. Estava com a barriga na boca e em poucas
semanas iria parir. Isto, ao invés de atrair homens, os afasta.
Com
aquela barriga, não conseguiria trabalho no comércio nem em nenhuma casa de
família como empregada doméstica. Da mesma maneira, nenhum cabaré iria aceitá-la.
A prostituição quer moças jovens e com o corpo esbelto, as ancas e as coxas bem
torneadas e peitos que sirvam à orgia e não ao aleitamento materno.
O
lugar onde fora viver era uma espécie de pequeno apartamento térreo em um
decadente sobrado da abandonada localidade do Varadouro, onde o proprietário
alugava quatro apartamentos. Dois no andar térreo e dois no primeiro piso. Ali,
Sônia dispunha de uma moradia úmida, com paredes mofadas e instalações
sanitárias que em outros momentos lhe causariam asco. Apenas uma sala, uma
cozinha, um quarto e um pequeno banheiro. Mas, era barato.
Os
dias passavam lentamente enquanto Sônia consumia a poupança que obtivera com a
venda da casa e que cuidou de guardar em um banco, assim que chegou ao
Varadouro, juntamente com as suas joias e o dinheiro que já possuía guardado no
mesmo banco. Comia mal, para não gastar dinheiro.
Suas
roupas começaram a ficar puídas, enquanto os seus sapatos começaram a entortar
e ganharam forma arredondada, como acontece com os sapatos velhos quando estes
vão tomando o formato dos pés pelo excesso de uso. A própria Sônia lavava e
passava com ferro a carvão as suas roupas e limpava os sapatos.
Em
poucas semanas fez amizade com Dona Ermelinda, moradora de um dos apartamentos
do primeiro piso que se apresentou a ela e lhe informou que trabalhava como
parteira. Assim, quando chegasse a hora, ela estaria pronta para atendê-la. O
fato é que o tempo foi passando e num final de tarde, por volta das cinco horas,
as contrações e as dores se apresentaram a Sônia.
Ela
deu à luz em casa, sem assistência médica, atendida apenas pela parteira
Ermelinda. Foi a parteira que ferveu a água e colocou em uma bacia ao lado de
Sônia. Foi Ermelinda que estimulou a parturiente a fazer força para expulsar o
feto. A barriga de Sônia foi comprimida pela parteira e quando no processo do
nascimento apareceu inicialmente uma perna da criança, foi ela a enfiar a mão
para puxar o bebê enquanto a sertaneja, muito suada, berrava e gemia alternadamente,
se contorcendo com as dores do parto.
Quando
a criança nasceu, foi Ermelinda que a segurou, cortou o cordão umbilical, fez o
curativo, limpou os restos da placenta, lavou o bebê com água morna, o enrolou
nos panos que estavam separados com tal finalidade e deu uma palmada na bunda
da criança para provocar o choro. Colocou o bebê ao lado da mãe e foi ao quintal
do sobrado enterrar a placenta, como mandava a tradição.
-
É um menino macho. Acabei de pegar no documento do dele – falou Ermelinda.
-
Que bom. Vai ser Eleutério. O nome do meu avô pelo lado do meu pai – disse Sônia.
-
Que nome mais feio esse Lotero – Ermelinda não se conteve e fez a exclamação
divergente. Sônia estava sensível, derramou algumas lágrimas, mas não
pronunciou nenhuma outra palavra.
O
fato é que Ermelinda foi um anjo que caiu do céu e protegeu Sônia naquele
período difícil. O resguardo era de 40 dias. O menino pegou rapidamente o peito
da mãe e mamava até se fartar. A parteira providenciou o preparo das primeiras
canjas de galinha e dos caldos de arroz que compuseram a dieta de Sônia no
início do resguardo.
-
Agora, tudo está pior. Sou mãe solteira e tenho um filho sem pai. Não posso
contar a ninguém o nome do pai. De pouco ainda também contar. O cartório só
registra o nome do pai se o pai declarar. E ele está morto – pensava Sônia no
dia em que se dirigiu à Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia para marcar o
batismo da criança. Foi a paróquia que ela escolheu depois que passou a viver
em Varadouro.
-
José Eleutério da Silva, nascido em João Pessoa, no dia 28 de setembro de 1936,
filho de Sônia da Silva. Pai desconhecido – assim ficou registrado o menino no
livro de batismos da Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia. O mesmo teor da
anotação feita no livro de registro de nascimentos do Cartório do Registro
Civil de João Pessoa.
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