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O TORMENTO DA DÚVIDA


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento

 

 

Sônia não conseguiu digerir a versão contada pelo Padre Galo de que a severa punição aplicada ao Frei Fernado, com a sua consequente remoção para a Diocese de Manaus, fora decisão personalíssima de Dom Moisés, o Arcebispo de João Pessoa. Para ela, havia ali a mão pesada e o interesse no pecado da carne presente no relatório do Padre Galo, que inconscientemente já ressuscitara o Pente Fino.

Por lhe convir, Sônia apenas demonstrou privadamente ao sacerdote a sua indignação com o que fora decidido, mesmo tendo ela sido absolvida de qualquer responsabilidade. Estava convencida de que a sua absolvição e o castigo imposto ao Frei Fernando tinham origem no olho comprido que o novo pároco lançava sobre ela.

Era inegável que a personalidade de Galo era muitas vezes mais forte que a do Frei Fernando. Em algumas ocasiões, a própria Sônia sentia subir o fogo e tinha medo de fraquejar diante da tentação e do desejo. A mão pesada de Galo ajudara Sônia na absolvição e no fato de as mexeriqueiras da Igreja ficarem amedrontadas. Por isto, elas reduziram o falatório e Sônia teve uma temporada de paz.

Os passeios pelas praias de Cabedelo deixaram de existir. Sônia conseguira retomar a rotina de vida, em outro padrão, com outros hábitos. Todas as manhãs ia à missa das oito horas. Retornava para casa e se dedicava a leitura, hábito que fora estimulado por Orozimbo e acentuado nos meses felizes que convivera com o Frei Fernando.

À tarde, a partir das 15 horas, chegava à Casa Paroquial, onde recuperara o seu trabalho como Secretária. O Padre Galo a consultava frequentemente e cada vez mais crescia o volume de trabalhos que lhe eram demandados. Sônia era, indiscutivelmente, naquele novo momento, peça chave na gestão paroquial.

As suas responsabilidades impunham um contato cada vez maior com o Padre Galo que não disfarçava o interesse em conversar com a sua funcionária. As cobranças por resultados faziam com que Sônia ficasse no trabalho quase sempre para além do expediente que deveria se encerrar às 19 horas.

Com o hábito de prolongar o trabalho, por volta das 20 horas o Padre Galo sempre convidada Sônia para fazer a refeição da noite com ele. Isto terminou virando rotina. Os repastos noturnos se repetiam todas as noites, de segunda a sexta-feira. Tal costume somente se quebrava na última semana de cada mês, quando Sônia recebia a visita de Orozimbo.

Ele continuava a visitar a sertaneja ao final de cada mês. Eram cinco dias que ficava na residência dela. Já não existiam mais as emoções do sexo. Contudo, persistia o afeto, o amor puro e verdadeiro, como é o da relação entre pai e filha, entre irmão mais velho e irmã mais nova, entre bons amigos íntimos e confidentes.

Sem falar nos bons presentes de joias e bons cortes de tecidos que ele sempre levava para a sua amada e nos generosos valores em dinheiro que recheavam os envelopes que ficavam na gaveta da cômoda sempre que ele se despedia no último dia da visita. Dinheiro que garantia a Sônia o elevado padrão de vida que ela levava.

A nova realidade dada pela impotência sexual de Orozimbo estabeleceu uma rotina que antes inexistia. Ademais era visível que até na aparência física Orozimbo não era mais o mesmo. Perdera peso e todos testemunharam o recuo da volumosa pança anteriormente ostentada pelo mascate.

O casal ficava agora, durante cinco dias, sentado em cadeiras de balanço de palhinha, um ao lado do outro. Conversavam sobre a vida e Orozimbo gostava de falar detalhadamente da sua história de vida e das suas aventuras com as muitas mulheres das inúmeras camas que frequentou.

A rotina da casa ficava sob a responsabilidade da preta Dadá, uma empregada doméstica que Sônia havia contratado no auge da crise das apurações do seu relacionamento com o Frei Fernando. Dadá se tornara pessoa da sua confiança e cada vez mais era sua confidente. Cuidava da sua vida, cuidava das suas roupas, era encarregada da limpeza da casa e, também sua cozinheira. Chegava as seis da manhã para preparar a primeira refeição e ia embora as quatro da tarde.

Naquela nova fase havia somente uma coisa que incomodava Sônia. Ela não sabia se Orozimbo tomara conhecimento do seu affair com o Frei Fernando. Temia que ele descobrisse tudo e rompesse o relacionamento com ela, fazendo cessar a sua principal fonte de receita.

Mas, o mascate não dava qualquer sinal de haver tomado conhecimento daqueles fatos desabonadores da reputação da moça. Continuava o mesmo no carinho, no tratamento, nas conversas, nas atenções, no hábito de visitá-la mensalmente, nos presentes que lhe levava e no generoso volume financeiro que deixava nos envelopes cada vez que se encerrava o período de visita.

Tal dúvida era fonte de pesadelos e noites mal dormidas por parte da cortesã. Ela se habituara àquela vida de luxo e temia retomar o seu status anterior de moça pobre que morava em condições precárias, que não tinha condições de se vestir com dignidade e que se alimentava de modo precário.

Tal dúvida era o seu tormento.

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