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TROCA DE PRESENTES


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento

 

 

O Desembargador Elífio era um homem inteligente e com uma enorme capacidade de seduzir pelo modo como conversava e envolvia seu interlocutor. Se Sônia pretendia se manter distante dele, como pensara ao abrir o postigo da porta principal da sua casa, certamente cometeu um erro ao permitir que ele entrasse e tomasse assento em uma poltrona da sua sala de visitas.  

Ele gostava de comentar nas conversas com seus amigos o que observava nas relações entre homens e mulheres no início de século XX:

- Homem se encanta pelos olhos. As tetas fartas, as ancas largas, as coxas grossas, o cabelo bonito e bem arrumado da mulher são coisas que possuem muito poder e enlouquecem o homem, estimulando os seus desejos. A mulher é seduzida pelos ouvidos – gostava de dizer o magistrado.

- Mulher gosta de homem que sabe falar bonito. Se ele estiver elegantemente vestido, ajuda muito. Mas, ele tem que saber conversar, dizer coisas que a mulher gosta de escutar. Saber dirigir a ela o elogio adequado, na hora certa. E se souber usar boas roupas e bons sapatos, melhor ainda. Tendo dinheiro para ir com ela a lugares bons e refinados, não tem como errar – concluía.

Isto ele vinha fazendo desde a hora que se sentou na sala de visitas de Sônia. Pedira desculpas, levara rosas e percebeu como ela, que lhe fora resistente na chegara, vinha abrindo a guarda e oferecendo o seu sorriso largo e irresistível. Sônia já havia retirado do encontro os seus muros de proteção.

Para que o Desembargador percebesse que ela estava desarmada, pediu licença e foi até a cozinha, onde Dadá, antes de sair, deixara um generoso bule de café quente, fresquinho. Sobre a bandeja que ela transportou ao regressar para a sala, bule, pratos e xícaras de porcelana, facas e colheres de prata, café quente e um bom pedaço de bolo Souza Leão, a apreciada iguaria doce que as casas mais refinadas de Pernambuco gostavam de servir aos seus convivas. A Paraíba amava cultivar os mesmos hábitos dos pernambucanos.  

Colocou o serviço sobre a mesa de centro, serviu a xícara de Elífio e, também a sua, além de duas fatias do bolo nos pratos de sobremesa.

- Esta é uma demonstração de que já ficou no passado o nosso mal-estar. A vida anda pra frente – disse a dona da casa.

- É também o meu entendimento – disse-lhe o Desembargador.

Colocou a mão no bolso interno do seu paletó, retirou um pacote embrulhado em bom papel de presente amarrado com um laço de fita de seda branca. Ao abrir o pacote, Sônia encontrou uma caixa de acabamento luxuoso, forrada com veludo azul. Olhou o interior da caixa e não conteve o seu espanto. Elífio tomou a dianteira do discurso:

- Estive ontem em João Pessoa. Fui encontrar o meu amigo George Monteiro, presidente do Tribunal de Justiça, que acaba de chegar de Paris. Estive na capital da França no ano passado e vi essa joia. Desde que a vi, toda vez que penso em você ela me aparece na mente, esse mimo. Toda vez que penso na joia, a sua imagem é pintada na minha imaginação. Dei o endereço da Joalheria a George e pedi a ele que adquirisse esse adorno. Espero haver apagado as rusgas do passado e ter selado a nossa duradoura amizade do futuro – concluiu o magistrado.

Os raios de sol que entravam pela janela e se projetavam especialmente sobre o local onde Sônia se sentara, davam muita intensidade ao brilho do grande broche de ouro lapidado sob a forma de uma elegante senhora com seu galgo inglês. Algumas lágrimas rolaram sobre as maçãs do rosto de Sônia. E ela dirigiu a palavra a Elífio:

- O único homem que até hoje me presenteou com joias foi Orozimbo. Você é o segundo. Mas, nenhuma das joias que eu ganhei se compara ao requinte e ao luxo deste seu presente. Você tem se revelado a maior de todas as joias. Assim você acaba me cativando. Eu tenho compromisso com Orozimbo. Não queira me conquistar.

O desembargador não perdeu tempo e foi certeiro na resposta:

- Quem conquistou primeiro foi você. Creio que os erros que eu cometi foram movidos pelo ciúme e pelo desejo de estar no lugar daquele que a assediava – disse.

Aos 56 anos, Elífio não tinha porte atlético. Era um homem pardo, com a barriguinha própria aos homens da sua idade que não fazem exercícios físicos costumeiramente. Os cabelos sempre estavam penteados e o uso da brilhantina, como era moda, os mantinha grudados à cabeça, resistindo a mais intensa das ventanias sem que um único fio se desalinhasse.

Os ternos de linho branco eram os seus prediletos. Gostava dos sapatos pretos e, também gostava de usar alguns pares de sapatos marrom. Anéis, como era normal aos homens de posses, a começar pelo de formatura, todo em ouro 18 quilates e um enorme Ruby vermelho.

O perfume de Elífio era sempre o francês Jean Patou que ele mandava importar pelos seus amigos endinheirados, quando estes embarcavam em algum navio a vapor com destino a Europa. Sônia sempre tivera uma predileção pelos homens cheirosos. E terminou descobrindo que até nisso o abraço do Desembargador valeria a pena.

Não demorou. Naquele mesma tarde o casal gemia de prazer na cama de Sônia. Elífio se retirou depois das oito da noite. O café do bule estava frio e o bolo Souza Leão permanecia intocado.



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