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O INCÔMODO DE CARMEN


   

Jorge Carvalho do Nascimento

 

 

Constância nasceu e aos três anos de idade estava crescendo uma menina bonita e saudável. Constância dava sinais de que seria como suas irmãs, Carmen e Carla, ambas também se transformando em mulheres de rara beleza. Sônia não esquecia os traços bonitos do rosto bonito do seu menino Eleutério, sete anos depois deste haver sumido misteriosamente durante uma viagem de navio entre João Pessoa e o Rio de Janeiro, sem deixar qualquer vestígio. Se vivo, Eleutério agora estaria com 22 anos de idade.

A balzaquiana Sônia, prestes a completar 38 anos de idade, estava desde o parto vivendo a vida rotineira de dona de casa bem comportada durante quase quatro anos. Não cessava de receber elogios das amigas e de algumas famílias que antes censuravam o seu jeito espevitado de mulher dita de vida fácil.

O jornalista Camilo, seu companheiro, estava feliz com a vida luxuosa que levava ao lado de Sônia e se mostrava um homem muito educado e cuidadoso com a companheira e com as três enteadas. Sônia cumpria o compromisso que assumira e continuava honrando a mesada mensal de compartilhar com ele 25 por cento da renda que recebia por ser a sócia majoritária da Padaria Triunfo. Para Camilo era muito dinheiro. Ele nunca tivera tanto em toda sua vida.

Carmen crescera muito. Aos 15 anos estava concluindo o Ginásio e apesar da pouca idade era já uma mulher sedutora e atraente. Geneticamente acordou muito cedo. Quando a primeira menstruação chegou, a menina não havia ainda cumprido 14 anos desde o seu nascimento. Seu corpo já era o de uma mulher diante da qual o machismo não permitia que os homens se contivessem.

Chegara a um metro e setenta de altura, coisa rara para uma menina de 15 anos nas terras paraibanas da metade do século XX. Pernas grandes, bem torneadas e muito roliças, com coxas que mesmo guardadas sob as anáguas, saias e vestidos insistiam em marcar suas formas nas dobras da cambraia, do linho e da seda das suas roupas.

As ancas largas e a bunda protuberante eram marcas inconfundíveis do seu corpo de menina mulher. O fato de ser esbelta e longilínea fazia com que sobressaíssem os seus peitos fartos e pontiagudos, desafiadores da lei da gravidade, O pescoço comprido, o nariz e a boca bem delineados, as maçãs do rosto róseas adornavam o ambiente no qual reinavam os seus olhos castanhos.

Inteligente, com excelente desempenho escolar, era uma estudante destacada que os professores não cansavam de elogiar. Vivia cercada de amigos e amigas que fazia na escola, onde exercia papel de liderança, pela sua personalidade expansiva e pela facilidade que tinha em se comunicar.

Sem que nada tivesse acontecido, Carmen, sempre alegre e sorridente fora em poucos dias tomada por profunda tristeza que modificou radicalmente o seu comportamento. O seu senso humor modificado a fez uma adolescente que alterava o comportamento entre a agressividade e a introspecção.

Se afastou das amizades e passava agora a maior parte do tempo trancada em seu quarto. Quando se sentava à mesa para as refeições estava sempre calada e assim que acabava, retornava ao seu quarto e trancava a porta. A rebeldia e os ataques da raiva eram contínuos e voltou a um velho hábito da infância: chupar o dedo polegar. O rendimento escolar de Carmen despencou.

Sônia percebeu que alguma coisa não estava indo bem com a sua filha. Em uma manhã, logo depois do café, bateu na porta do quarto da adolescente. Esta abriu e se abraçou com a mãe. Carmen caiu num choro convulsivo e se deitou com a mãe na cama.

- Eu não aguento mais esse homem, mãe. Eu vou embora daqui e vou voltar para a casa do meu tio Willison em Campina Grande. Quando você não está aqui em casa, eu evito entrar no banheiro pra tomar banho. Se eu entrar no banheiro, ele entra atrás. Quer me ajudar a passar o sabonete e fica alisando meu corpo, passando a mão no meio das minhas pernas, alisando minha bunda e ensaboando meus peitos. Botou pra fora aquela coisa feia e fedorenta que ele tem pendurada embaixo das pernas e botou na minha boca e segurou minha cabe pra frente e pra trás, até encher minha boca com aquele leite grosso com gosto de sabão. Eu estou com vergonha, mãe. Vou ter que ir a Igreja me confessar com o Frei Adalberto – disse Carmen, voltando a chorar convulsivamente e se abraçando fortemente com a mãe.

- Você fique tranquila, minha filha. Sua mãe está aqui do seu lado e isso vai acabar hoje – disse Sônia, olhando firmemente para a filha e a aconchegando com um abraço afetuoso.

Camilo havia saído para trabalhar. Estava na rua. Sônia sabia que ele iria voltar na hora do almoço. Ainda era cedo. Tomada de ódio, Sônia colocou todas as roupas, sapatos e alguns outros objetos pessoais de Camilo em duas malas e em um saco. Sentou-se à mesa e escreveu um bilhete curto e grosso:

_ Carmen conversou comigo e contou tudo. Se você tem amor à sua vida nunca mais cruze o meu caminho nem o caminho das minhas filhas. Vai ser pior ´pra você.

Depois de dobrar o bilhete e colocá-lo em um envelope, Sônia tomou um carro de aluguel, com a bagagem do jornalista e partiu direto para o escritório de Alex Dórea, o velho agiota que fora seu cliente nos tempos do Hotel Globo e que tinha fama de viver sempre protegido por três capangas violentos.

O velho amigo de Sônia se compadeceu da situação e informou que ela ficasse tranquila. Chamou Zé Rocha, o mais violento dos seus homens e lhe determinou que resolvesse a situação de um modo que Sônia pudesse viver em tranquilidade com suas filhas.

A solução encontrada por Zé Rocha, ninguém sabe. Nunca mais ninguém leu nenhum texto publicado por Camilo em nenhum jornal paraibano. Nunca mais o jornalista foi visto em nenhum dos locais que costumava frequentar.


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