Jorge
Carvalho do Nascimento
Carla,
a segunda das três filhas de Sônia teve um destino completamente diferente de Carmen,
a sua irmã mais velha. Erudita, Carla era uma mulher moderna, bonita, elegante,
de sucesso e sempre vestida com muito esmero. Em tudo parecida com sua mãe,
desde o princípio da puberdade chamou a atenção dos homens. Rosto aformoseado,
pescoço longilíneo, peitos fartos, quartos largos com bunda bem torneada e
proeminente, coxas grossas roliças, braços alongados, pernas compridas, cabelos
pretos e pele de sapoti.
Carla
teve uma formação diferenciada daquela que foi recebida pelas irmãs. Em 1956,
Sônia a levou, aos 15 anos de idade, para a Maison do Internato do Colégio das
Damas da Instrução Cristã, no bairro Ponte d’Uchoa, em Recife. Foi recebida
pela Irmã Olívia, a madre superiora.
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Estou aqui com esta menina que deseja fazer o curso científico e se preparar
para os estudos de Medicina – informou Sônia à religiosa.
-
A senhora sabe que esta Maison é um internato para moças de boa família.
Aqui estudam e convivem as filhas das famílias mais tradicionais da elite de
Pernambuco, da Paraíba, do Rio Grande do Norte, de Alagoas, de Sergipe e da
Bahia. Vejo pelo registro do nascimento da menina que não consta o nome do pai.
Isto cria a impossibilidade de aceitarmos a sua filha como nossa aluna. Se as
outras famílias souberem não irão concordar que as meninas convivam e durmam no
mesmo quarto em que dorme uma menina filha de pai desconhecido – afirmou em tom
severo a Irmã Olívia.
-
Tenho que lhe contar a verdade. Esta menina é filha de um pecado que eu cometi
aos 22 anos de idade. Ela não tem culpa de nada. Eu conheci o pai dela, médico
e plantador de algodão, o Dr. Costa, amigo do meu irmão comerciante que mora na
cidade de Campina Grande. Ele era viúvo. Começamos um namoro autorizado pelo meu
irmão Willison. Eu pequei contra a castidade e a fraqueza da carne fez eu me
entregar a ele. Foi só uma vez. Na semana que eu descobri que as regras não
desceram, ele morreu assassinado por um empregado da sua fazenda. Não deu tempo
da gente se casar e nem da menina nascer para ter o nome do pai no registro –
Sônia apostou tudo na mentira da viúva putativa, do futuro marido assassinado, do
casamento frustrado pela fatalidade, a fim de salvar a matrícula da filha na Maison
do internato. Percebeu que estava indo por um bom caminho.
-
Mas aqui é um colégio e um internato que custam muito caro. Como a senhora vai
fazer para pagar as contas da mensalidade da escola, dos livros e do material
escolar, da hospedagem, da comida, dos enxovais e das outras despesas que a
menina vai precisar fazer? A senhora é uma mulher sozinha, sem marido. Tem
dinheiro pra pagar essas contas todas? – questionou a Irmã Olívia.
Sônia
percebeu que poderia dar volta por cima e subiu no salto.
-
Irmã Olívia, a senhora ainda não me conhece. Eu sou uma mulher muito conhecida
e muito respeitada em João Pessoa. Sou proprietária da maior e mais importante
panificadora e doceria da capital da Paraíba, a Padaria Triunfo. Trabalhei
muito para ter o que eu tenho. Dinheiro pra mim não é problema. Eu sou cristã,
sou católica e estou acostumada a fazer doações à Catedral de João Pessoa que
valem mais do que o custo de um ano aqui na Maison do internato. Vou lhe
fazer uma sugestão: aceite minha filha e eu pago adiantado o ano inteiro das
mensalidades escolares, o ano inteiro da hospedagem e da comida. A senhora terá
em mim a mãe de uma aluna sempre disposta a colaborar financeiramente como
todos os pedidos que essa instituição me apresentar – o discurso de Sônia soou
como música aos ouvidos da Irmã Olívia. O vil metal sensibilizou a religiosa.
-
Eu vou abrir uma exceção. Já percebi que a senhora é uma pessoa de bem, de boa
família, uma boa cristã, uma mulher de vida retilínea que apenas cometeu um
pequeno deslize e uma mãe de família sempre muito dedicada e zelosa com a
formação da sua filha. Nosso compromisso cristão jamais deixará a sua filha desamparada
e sem uma boa formação. As aulas começarão dentro de uma semana, mas a menina
já pode dormir aqui a partir de hoje. Algumas internas cujas famílias vivem em
lugares mais distantes já estão chegando, tem umas cinco internas que chegaram
esta semana. E, a partir de hoje até a próxima segunda-feira chegarão as
outras. Vou mandar agora mesmo a nossa Tesoureira fechar todas as contas do ano
inteiro. A senhora pode procurar o seu banco e pagar até a próxima segunda-feira.
Carla será muito bem recebida pela nossa comunidade – afirmou a generosa Irmã
Olívia.
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Fique tranquila, Irmã. Sairei daqui deixando todas as contas pagas até o final
deste ano. Não tem dinheiro que pague a formação e a felicidade da minha filha.
Eu vim prevenida, preparada para resolver todos os problemas. Nesta valise
preta há dinheiro suficiente para todos os gastos que são necessários – disse um
resoluta e altiva Sônia, consciente do poder que tem o dinheiro de limpar a
ficha de toda e qualquer reputação e apagar o passado, por pior que este possa
parecer.
-
Deus seja louvado! – exclamou a generosa e desinteressada Irmã Olívia.
A
conhecida escola das freiras da Congregação das Damas da Instrução Cristã, de
origem franco-belga, tinha muito prestígio em Pernambuco pela importância das
famílias que colocavam ali as suas filhas como alunas internas. Sônia resolvera
apostar tudo no sonho que a filha manifestara logo no início do seu último ano
no curso ginasial feito em João Pessoa: estudar Medicina.
Era
um sonho incomum para as meninas. Moças de boa família sempre foram preparadas
para o casamento ou, na melhor das hipóteses, para a carreira do magistério. De
resto, ingressar no curso de Medicina significava se apropriar de conhecimentos
de Biologia, inadequados para as meninas das famílias de boa posição social.
Não
obstante ser uma instituição católica, a Maison do Internato Congregação
das Damas da Instrução Cristã se notabilizou desde a sua instalação como escola
marcada não apenas pela sua catolicidade, mas também pelo conteúdo laico de
muitos saberes transmitidos em sala de aula. Principalmente aqueles que diziam
respeito ao conteúdo das ciências biológicas e da natureza.
O
currículo adotado na Maison foi desde o princípio impregnado pela
romanização católica, mas também com um forte hibridismo cultural. Uma
experiência de afirmação confessional adaptada com a instrução secular. Além de
religiosos, a Maison sempre contratou professores com formação laica
como médicos, advogados, engenheiros e outros profissionais liberais. Esses
leigos sempre foram os responsáveis pelo ensino de disciplinas que a Maison
adotou, como Biologia Evolucionista, Química e Física.
Um
novo mundo começou a se abrir para Carla, a segunda filha de Sônia.
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