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DR. PAÇOCA, O ESCULÁPIO


 

Jorge Carvalho do Nascimento

 

 

Miguel Ferreira Lopes era o verdadeiro nome do Dr. Paçoca. O prosaico apelido ele recebeu em 1952, em Salvador, quando cursava o segundo ano da prestigiosa Faculdade de Medicina da Bahia e foi atropelado ao sair completamente bêbado, as duas da madrugada, do conhecido Cabaré Tabaris, na rua Chile.

Ao volante do Plymouth 51 preto responsável pelo atropelamento estava o Dr. Martins Fernandes, seu professor de Histologia. Como o estudante, o mestre também acabara de sair de uma noitada de orgias no Tabaris, onde consumira alentadas doses de conhaque, a sua bebida predileta.

O mestre reconheceu o discípulo vítima do atropelamento. Desceu do carro, apanhou o estudante em seus braços, o acomodou no banco traseiro e seguiu para o novo e bem equipado Hospital das Clínicas, inaugurado em 1948. O estado de saúde do estudante Miguel não era dos melhores.

Chegou ao nosocômio desacordado, o que fez com que os médicos que o atenderam suspeitassem da possibilidade de ter havido um traumatismo craniano mais grave, embora aparentemente não houvesse sinais de fratura do crânio. A perna esquerda estava fraturada na tíbia – a velha e conhecida canela.

Mas, não eram somente estes os problemas que afligiam o pobre Miguel. Havia sangue na saliva, levando a suspeitas de hemorragia interna. Os médicos tinham a impressão de existir alguma vértebra lesionada, mas ainda necessitavam submeter o paciente a alguns exames e ao raio X para confirmar tal possibilidade.

Foram 42 dias hospitalizado até receber alta e dispor da possibilidade de retomar as aulas do curso de Medicina, tendo perdido algumas provas no período. Tudo ficou muito ruim. As escoriações foram tantas que os colegas deram imediatamente ao Miguel o apelido de Dr. Paçoca, numa referência àquele prato da cultura nordestina que mistura carne desfiada com farinha.

Durante a temporada de internação, o Dr. Paçoca teve a oportunidade de refletir muito sobre a sua vida e a sua história de menino pobre que saiu da zona rural do município sergipano de Santa Luzia do Itanhy e conquistou uma vaga, aprovado no difícil exame de admissão da Faculdade de Medicina da Bahia.

Recordou do momento em que se despediu da sua família e empreendeu, montado a cavalo, a primeira etapa da viagem que o levou até a estação ferroviária da cidade de Boquim, onde embarcou no comboio com destino a Salvador, a fim de concluir os estudos secundários e se submeter aos exames de admissão na Faculdade de Medicina.

Os estudos da escola primária que fizera no Grupo Escolar Gumercindo Bessa, na cidade de Estância, em Sergipe, não lhe garantiram uma formação básica das mais avançadas. A família pobre não poderia lhe garantir matrículas nas escolas em que estudavam os filhos das famílias mais elitizadas do sul do Estado de Sergipe. A sua permanência na vizinha cidade de Estância somente fora possível graças ao amparo da sua madrinha Helena Pereira, que o recebeu em sua casa e lhe deu, além da moradia, comida, roupa, livros e material escolar.

Ao mudar para Salvador, onde cursou o Ginásio e o Científico no Colégio Central, sua vida foi financiada pelo irmão da sua mãe, o tio Padre Rodolfo, então vigário da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, que instalou o sobrinho em um dos quartos da Casa Paroquial e custeou os estudos do rapaz.

Mesmo com todos os apoios que recebeu, era um aluno medíocre. Todos se surpreenderam com a notícia da sua aprovação e ingresso no curso de Medicina. Nos estudos médicos os seus colegas nunca conseguiram entender como ele era aprovado a cada ano.

Colou grau em dezembro de 1955. O tio, Padre Rodolfo, era amigo de Antônio Balbino, então governador da Bahia que nas manhãs de domingo gostava de ir à missa na Igreja de Nossa Senhora do Rosário. O padre traficou influência e em janeiro de 1956 o seu sobrinho, Dr. Miguel Ferreira Lopes, ou Dr. Paçoca, como era tratado por todos estava bem empregado no Hospital Santa Terezinha.

Como médico, não foi dos mais hábeis. Trabalhou no serviço de urgência do hospital, sempre enfrentando problemas e denúncias de erros nos diagnósticos que costumava fazer. Mais de uma vez prescreveu medicamentos de estômago a pacientes infartados. Esse era o menor dos problemas.

De comportamento ético duvidoso, se envolveu num rumoroso caso. Terminou vendo o Poder Judiciário baiano condená-lo a perda do direito de exercer a profissão depois que assinou um falso atestado de óbito para permitir que um filho de influente família baiana se apropriasse de um patrimônio milionário, afastando o seu único irmão do direito aos bens deixados pelos pais que faleceram em acidente rodoviário.

Evitou a prisão, mas foi viver longe da cidade de Salvador. Mudou-se para a cidade natal da sua esposa no sertão pernambucano, onde com as condições de circulação das informações na metade do século XX, continuou a exercer tranquilamente uma Medicina compatível com o seu grau de aprofundamento científico.

Naquele fim de mundo em que foi viver não havia a menor possibilidade de ser descoberto que exercia ilegalmente a Medicina. Ademais, a população local ficava muito satisfeita por contar com um esculápio ali residente e com o atendimento que ele era capaz de fazer, sempre acompanhado das amostras grátis que oferecia aos pacientes no final de cada consulta.

Mantinha na feira local uma barraca onde recebia e atendia as pessoas aos sábados. Ao final contabilizava uma boa quantidade de galinhas, porcos, patos carneiros, garrotes, novilhas, alguns quilos de carne verde, outro tanto de porco, frutas diversas, leite e tanta coisa mais. A isto se somavam alguns trocados que recebia dos mais abastados e a renda de professora que todo mês era paga à sua esposa pelo estado de Pernambuco.

Até a morte viveu no sertão diagnosticando verminoses, cuidando de ferimentos, certificando gravidez e fazendo partos no ambulatório improvisado ou nas casas das famílias mais influentes. Os casos mais graves ele encaminhava para a capital do estado. E assim foi até fechar os olhos.

Dr. Paçoca foi um homem que viveu feliz.

   

 

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