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O NARRADOR, A FICÇÃO, A VIDA REAL

 


Jorge Carvalho do Nascimento


 

Os talentos de José Vasconcelos do Anjos, o Zeza, vieram bem embalados pelo manto da discrição. Pouco se sabe sobre o seu entusiasmo de pianista, artista plástico e gourmet. O piano foi o instrumento musical ao qual se dedicou desde a infância. É grande o encantamento que ele possui pelo jazz e pelo blues, certamente aprimorado durante a temporada juvenil que viveu nos Estados Unidos da América.

De volta a Aracaju, estudou Medicina na Universidade Federal de Sergipe. Médico do trabalho e homeopata qualificado, angariou o respeito dos colegas e daqueles que necessitavam dos seus serviços profissionais. Exerceu a profissão com zelo e competência, conquistou pacientes que lhes foram fiéis. Diariamente, exerceu a clínica por mais de 30 anos, até se aposentar.

Durante a infância escreveu poemas e como estudante universitário começou a sua atividade de contista, participando de alguns concursos literários nos quais foi finalista. À medida que se aproximava da aposentadoria transitou em direção ao maior dos seus encantos – a Literatura. A Literatura é a porta que nos permite conhecer a alma de José Vasconcelos dos Anjos, compreender a sua sensibilidade diante da vida.

Conheci o Zeza escritor como contista, em 2016, quando ele publicou O HERBANÁRIO DA TIA FINHA E OUTRAS CURTAS ESTÓRIAS, seu primeiro livro. Li de uma sentada, um só fôlego. O autor não parou de publicar, conquistou novos leitores e migrou do conto para o romance.

A matéria prima que sustenta o discurso literário do autor Vasconcelos diz respeito a todos nós: a condição humana. Ao ler os contos do HERBANÁRIO, parei e me convenci definitivamente de estar diante de um grande narrador, quando vi as primeiras frases do conto “Atire a Primeira Pedra”.

Bom narrador, ele sabe segurar o leitor pelas cenas que é capaz de projetar na consciência de quem lê. Eu, leitor, me curvei diante da cena na qual o personagem apoplético e quase tragicômico destrói as fotos do casal e atira em Judas, acertando o quadro da Santa Ceia que os donos da casa mantinham pendurado na parede, como era hábito da cultura daquela família e de todas as famílias cristãs, as boas famílias de bem.

Depois do HERBANÁRIO, li sucessivamente os romances SARA, SUITE DOS VIVENTES, CÃO SARNENTO e LÁGRIMAS DE CHUVA. Destaco estes. Deles, o que mais me agrada, é o CÃO SARNENTO. Nada é tão humano. Ali, a sua narrativa nos põe diante de um vigoroso discurso que retira da letargia, desde a primeira linha, o mais apático dos leitores, com enredos densos, tensos e sedutores.

Agora, José Vasconcelos dos Anjos nos vem com A INGLESA, o objeto deste livro. Outra vez ele nos mostra o quanto é degradante a condição humana, pouco importa em qual das margens do Oceano Atlântico estejamos. Tanto faz a margem europeia, a africana ou a americana. Zeza demonstra isto ao nos fazer viajar entre uma aldeia subsaariana, a cidade inglesa de Portsmouth e a pequena, porém próspera, cidade brasileira de Maruim, província de Sergipe, em pleno século XIX.

Zeza vai nos apresentando beneditinamente aos seus personagens e abrindo com parcimônia a envolvente cortina do enredo. O negro jovem, forte, de músculos rijos e vigorosos, raptado da África e escravizado para venda no Brasil. No hemisfério norte, a jovem inglesa, filha de família abastada, vivendo com o seu pai comerciante e a sua irmã, na cidade de Portsmouth até se casar. Também o rico exportador e importador inglês que vive em Maruim, no Brasil, mas viaja frequentemente à sua terra natal a fim de fazer negócios.

Os estranhamentos culturais da inglesa soam importantes para o enredo, em face das práticas tropicais masculinas nas quais era comum que os homens fossem frequentadores habituais de lupanares e fornicassem sem cerimônia com escravas jovens que cuidavam dos serviços domésticos.

E, também a hostil natureza dos trópicos, com seus saguis, lagartixas, teiús, gatos, cães, cobras, ratos, carapanãs, muriçocas de todo tipo e os terríveis Maruim, tipo de mosquito que denominava a cidade onde ela vivia e que voando em nuvem atacavam de acordo com o movimento de enchente ou vazante das marés.  

Como pano de fundo, a luta pela extinção do trabalho escravo, o papel que jogava em tudo isto a igreja católica, o poderio econômico dos senhores de engenho e dos empresários estrangeiros, além da dureza das dificuldades impostas pelas relações sociais aos que ali viviam.

Também neste A INGLESA, a escrita de Zeza retira o leitor da sua zona de conforto e o coloca no centro de um turbilhão de personagens, fatos e contextos que chocam, mas mostram a vida real no século XIX, ao estilo da escola bem representada no Brasil por Nelson Rodrigues.

Os personagens de Zeza vivem a sua saga na cidade Maruim, região da província de Sergipe produtora e exportadora de açúcar, uma pequena cidade do litoral brasileiro. Cidade típica da região açucareira do Brasil. Cidade que se anima com o vai e vem das embarcações no seu porto. Navegantes que levam mercadorias manufaturadas e trazem máquinas e equipamentos industrializados da Inglaterra, da Alemanha e de outras regiões europeias. As embarcações chegam transportando forasteiros e devolvendo às suas famílias os nativos ou forasteiros que fazem negócios e trabalham fora ou que foram resolver problemas da vida em outras paragens. Gente que chega pra ficar poucas horas, poucos dias ou para sempre. Aglomerado urbano que se entristece na hora da partida dos barcos. Gente que vai, mas não sabe quando volta. O tempo correndo em outra velocidade, bem mais lenta.

Romance feito das coisas do amor, dos casamentos desencontrados, da infelicidade conjugal dissimulada e do sexo sem afeto. É rico o universo da trama de Zeza. A orgia e a lascívia da pequena cidade, onde mulheres e homens negros escravizados servem aos senhores e às senhoras de “boa família”. Os prostíbulos como negócio, vistos socialmente de modo desonroso, porém amplamente tolerados. O romance da opressão sofrida pelos escravizados e pelas escravizadas. E também um outro tipo de opressão igualmente perverso, aquela sofrida pela mulher branca, pela sinhá.

A reafirmação das boas qualidades do narrador competente que conta histórias envolventes, diferencia personagens, controla a ação de todos eles. Enfim, aqui está mais um texto de José Vasconcelos dos Anjos, no qual a ficção narra a vida real. 

Livro publicado sob o selo da Criação Editora, onde mais uma vez a competente designer gráfica Adilma Menezes oferece a quem manuseia o objeto livro uma publicação prazerosa aos olhos. Da capa à última página, tudo feito com muito esmero. 

Vale a pena.

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