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A ESCOLA CONTRAMINADA


 

 

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

“O acesso a uma boa Educação é um direito de todos. Não deveria ser um PREVILÉGIO”. Entusiasmado, o jovem e bem falante Onildo iniciou assim o seu discurso de colação de grau na Faculdade de Direito do Crato, no Estado do Ceará. Era o orador da turma, muito popular entre os colegas desde que ingressara no curso

Ao mudar do pequeno distrito de Veado Velho, onde nascera, no diminuto município de Novo Oriente, Onildo Ferreira Farias ganhou dos novos amigos da Faculdade o irônico apelido de OFF (as iniciais do seu nome), uma forma que encontraram de debochar do seu hábito de falar pelos cotovelos e dominar todas as rodas de conversa das quais participava.

Mesmo assim, OFF era até aquela ocasião em que colava grau o cidadão de Veado Velho que mais avançara nos estudos, apresentado na sua terra natal como exemplo de rapaz pobre que venceu na vida, não obstante ser filho de uma família de pequenos sitiantes dedicada ao plantio de pastagens para alimentação de poucas cabeças de gado leiteiro.

OFF viveu, estudou e trabalhou em Veado Velho até os 17 anos de idade. Ajudava o pai a cuidar da pastagem e colaborava com a mãe na lida das seis vacas da família, das quais tiravam o sustento produzindo leite. Sempre ao lado do pai, da mãe e do irmão quatro anos mais novo, Agniane (estranho nome obtido a partir das duas primeiras letras do nome do pai, Agnaldo, e das duas últimas sílabas do nome da mãe, Cristiane). A família praticava a agricultura de subsistência plantando milho e feijão.

Mesmo sendo muito inteligente, o ingresso de Onildo no curso de Direito surpreendeu a reduzida população de Veado Velho. 19 famílias de sitiantes. Ninguém acreditava nesta possiblidade em face da limitada formação escolar recebida por ele. Curso científico feito à noite no Colégio da CNEC, a Campanha Nacional de Escolas da Comunidade, localizado na sede do município de Novo Oriente.

A jornada até a escola era cansativa. Seis quilômetros em bicicleta para ir e mais seis para regressar, numa empoeirada e escura estrada sem pavimentação, com alguns trechos que alagavam completamente quando chovia. A escuridão expunha OFF aos riscos de atropelamento por algum carro que ali passava, de queda em buracos e de choque com animais, como aconteceu certa feita ao acertar as ancas de um cavalo.

Todas essas dificuldades não impediam que Onildo fosse um bom e aplicado estudante. O ensino oferecido pela escola é que era muito frágil. O ginásio fora também cursado no mesmo Colégio Estadual Prefeito Elismando Bezerra. Estudava no período da tarde, depois de passar o turno matutino trabalhando na roça.

Por mais que se esforçasse, OFF não conseguia se libertar da limitada formação que recebera durante os quatro anos do curso primário na Escola Rural Professora Joasimara da Silva, a única instituição de ensino existente no distrito de Veado Velho. A sua primeira mestra, na sala de aula multisseriada, a volumosa Dona Lindemercia, se relacionava mal com a Língua Portuguesa.

Conquistara o emprego público de professora do município de Novo Oriente graças a influência do deputado estadual Carisvaldo da Silveira, de quem o seu pai, o pedreiro Reidonaldo, fora sempre cabo eleitoral na localidade. Dona Lindemercia errava tempos verbais, pronomes, flexões de gênero e outras regras comezinhas. Afinal, estudara apenas os dois primeiros anos do ensino primário. Era toda a sua formação.

Os erros que cometia, transmitia aos alunos da Escola Rural, na qual era a única funcionária. Fazia as vezes de professora, diretora, secretária, merendeira e zeladora. Dentre todos os seus equívocos um sobressaía: errava a pronúncia de quase todas as palavras que costumava usar. Mesmo as mais simples. E assim, ensinou ao pobre Onildo. Reconhecidamente esforçado, o menino foi obrigado a carregar esta insuficiência formativa para sempre, como ficou perceptível no discurso da sua colação de grau em Direito.

Apesar dos equívocos na pronúncia das palavras, OFF agora ostentava no dedo anelar da mão esquerda uma vistosa pedra vermelha: o anel de doutor advogado. Produzia as condições de sobrevivência no seu escritório de advocacia instalado na praça principal da cidade de Novo Oriente, com uma vistosa placa na fachada: “ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA DR. ONILDO FERREIRA FARIAS – CAUSAS CÍVEIS, CRIMINAIS E TRABALHISTAS”.

Na cidade, era conhecido como Dr. OFF. No fórum, as suas petições eram manuseadas pelo escrivão, pelo juiz, pelo promotor, pelo delegado e pelo Dr. Roberlaido Pantoja, seu ex adverso na maior parte das causas. Todos adoravam receber as peças assinadas pelo Dr. Onildo para se deleitar com os equivocados registros gráficos das palavras que o causídico escrevia.

ARRECARDAR, POBLEMA, CABELELERO, COCRANTE, MINDIGO, IMBIGO, PRIGUIÇA, ASTERÍSTICO, BICABORNATO, TORÁXICO, SUPÉRFULO, BENEFICIENTE, METEREOLOGIA, ARIOPORTO, LOSÂNGULO, TRIOLOGIA, REINVINDICAR, POLIOMELITE, CONHECIDÊNCIA, COMPANIA, CÉLEBRO, ENTERTIDO e tantas outras. A lista não tem fim.

Apesar dos pesares, normalmente obtinha sucesso nas causas que patrocinava e a sua fama de bom advogado corria longe. O Dr. OFF resolveu transformar o seu prestígio profissional em poder político. Nas eleições de 1974 foi candidato a deputado estadual pelo MDB. Pretendia atuar na Assembleia Legislativa, em Fortaleza, defendo os interesses do povo de Veado Velho, Novo Oriente, Crateús, Independência e Quiterianópolis.

Campanha eleitoral efervescendo viajou para a capital do Estado, a fim de gravar sua participação no programa eleitoral do partido, como candidato a deputado estadual que era. Bem produzido, o programa tinha a direção do erudito advogado José Augusto Magalhães Gomes, homem lido e rigoroso no uso da língua nacional.

O advogado Onildo chegou disposto a fazer boa figura. Iria denunciar as precárias condições de funcionamento da escola de Veado Velho. Começou a gravar, mas não foi do analfabetismo de Dona Lindemercia que ele falou. Estava indignado com a qualidade da água consumida pelos estudantes e fez deste problema o objeto do seu discurso.

No estúdio, maquiado, bem vestido, recebeu o aviso: GRAVANDO! “Meus amigos: a Escola de Veado Velho é uma MADASTRA dos MININO POBRE daquele DESTRITO. Enquanto os FILHO de MILHONÁRIO BEBE água mineral, os FILHO dos POBRE da Escola de Veado Velho bebe água CONTRAMINADA...”. Foi demais para os apurados ouvidos de José Augusto Magalhães Gomes.

Suspensa a gravação, ele orientou: “Diga comigo: CONTAMINADA”. Dr. OFF respondeu: “Entendi. CONTRAMINADA”. Impaciente, José Augusto voltou à carga: “Repita CONTA”. CONTA, repetiu o Dr. Onildo. “Repita MINADA”. MINADA, falou o Dr. OFF. “Agora, junte: “CONTAMINADA”. O candidato ficou eufórico e disse: “Assim ficou mais fácil. Agora, eu entendi: CONTRAMINADA”.

Irritado, José Augusto Magalhães Gomes exclamou: “Vou ao Fórum. Pode gravar. Por mim, a escola continua CONTRAMINADA”.

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

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