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Mostrando postagens de maio, 2023

A PERERECA

     Jorge Carvalho do Nascimento*     Os 114 degraus revestidos com cimento crespo da igreja de Monte Santo eram uma espécie de “Disneylândia” dos romeiros devotos do beato Antônio Conselheiro. Nos sábados e domingos lá estavam beatos, beatas, mocinhas casadoiras, viúvas esperançosas, enfim todo um sortido de exemplares da fauna humana que chegava de longe e de perto, uns tantos para fazer pedidos e promessas e outros para depositar ex-votos. O padre Barata coçava a cabeça a cada novo ex-voto, principalmente os de maior volume. Reproduções de perna inteira em tamanho real, de troncos e colunas vertebrais de pessoas curadas pela graça do beato. Não havia mais espaço na pequena capela para guardar tanta coisa. Sábado e domingo não cabia tanta gente na Igrejinha. Os romeiros se ajoelhavam no primeiro degrau e subiam a longa escadaria contando um a um os obstáculos que esfolavam lentamente os joelhos dos que se dispunham a subir. Alguns intensificavam o sofrimento e carregav

CÉU DE BRIGADEIRO

      Jorge Carvalho do Nascimento*     Marcos Antônio de Melo foi prodígio desde sempre. Aos 25 anos de idade, em 1970 era secretário de Estado da Administração em Sergipe. Dois anos antes, em 1968, havia colado grau em Ciências Econômicas pela Universidade Federal sergipana. O economista propriaense havia iniciado o ensino médio em Maceió, no prestigiado Colégio Batista Alagoano, quando era corrente o ano de 1961, e concluiu tal ciclo de estudos em 1963, no Colégio Estadual de Sergipe, o velho Atheneu. Depois que ascendeu ao primeiro time da administração pública de Sergipe, Marcos não parou mais. Nem como gestor e muito menos como intelectual insaciável na busca por novos conhecimentos. Já muito experiente na gestão, obteve o título de mestre em administração pública pela Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro, defendendo sua dissertação em 1982. Marcos desejou ampliar os seus saberes para além do campo da Economia. Prestou concurso vestibular, fez matrícula, frequ

O TIRO

      Jorge Carvalho do Nascimento*     Baleadeira, atiradeira, baladeira, funda, badogue, badoque, bodoque, estilingue. Eram vários os nomes, mas o objetivo era somente o de atirar pedras em passarinhos, lagartixas, sapos ou acertar alvos os mais diversos. Matar e maltratar animais era brincadeira de criança. Na transição da infância para a adolescência os amigos invejavam a minha coleção da baleadeiras, todas construídas artesanalmente por mim. A munição: pedras, bolas de gude, caroços de frutas, mamonas. Tudo que pudesse atingir um alvo e ferir os animais. E algumas vezes também as pessoas, principalmente nas emocionantes batalhas das guerras de mamona que os meninos protagonizavam e que marcavam o corpo dos menos hábeis. A violência era parte significativa das brincadeiras, das práticas dos meninos. Às meninas, as bonecas. Aos meninos, os jogos de pelada nos quais todos, de pés descalços se estropiavam chutando a bola e junto com ela as pedras, os cacos de vidro, os t

O MOVIMENTO DE BOULANGER

      Jorge Carvalho do Nascimento*     Desde que, em 2008, publiquei o livro A ESCOLA DE BADEN-POWELL, fui convidado, aceitei e passei a integrar a Patrulha Jaguatirica, um grupo de escoteiros que se dedicam a estudar a história do escotismo, especialmente no Brasil. Tenho muito orgulho de ser membro do grupo. Nos últimos tempos assumi a responsabilidade de governar o Distrito 4391 (Bahia, Sergipe e Alagoas) do Rotary International, no Ano Rotário 2024-2025. Tal compromisso tem me consumido muito tempo no processo de preparação e planejamento e me transformado em um Jaguatirica que é apenas espectador das atividades dos irmãos escoteiros que cotidianamente colocam a mão na massa com as atividades da Patrulha. Nesta última semana, necessitei fazer alguns exames de saúde. Não há nada melhor para salas de espera de consultórios médicos, laboratórios e clínicas que uma boa leitura. Apesar de já ter feito duas boas leituras do livro que aqui referencio, resolvi fazer do traba

O GRITO DAS CATEDRAIS DE JUSTINO

      Jorge Carvalho do Nascimento*     Em 1978 eu trabalhava na Assessoria para Assuntos Culturais da Secretaria da Educação e Cultura do Estado de Sergipe. Compunha a equipe de trabalho coordenada por Luiz Antônio Barreto e na condição de representante daquele grupo participei do II Encontro Nacional do Ensino de Cinema nas Escolas de 1º e 2º Graus. Coordenado por Djaldino Mota Moreno, então presidente do Clube de Cinema de Sergipe, o evento reuniu intelectuais ligados ao esforço que buscava os caminhos capazes de perenizar o ensino de cinema nas escolas de 1º e 2º graus. Integrei o grupo que redigiu o documento final do Encontro. Participando ativamente de todos os debates e integrando comigo e com outros participantes a equipe que redigiu o documento, tive a oportunidade de conhecer um professor de Educação Artística do Atheneu Sergipense, especializado em cinema, que me chamou a atenção por vários fatores. O brilho da inteligência daquele professor impactava a todo

LÁGRIMAS DE CHUVA

      Jorge Carvalho do Nascimento*     Toda vez que tenho em mãos livros de autores que eu conheço e admiro procuro fazer imediatamente a leitura. Não sei dizer as razões pelas quais desde o mês de outubro de 2022 deixei sobre a minha mesa, sem ler, a novela CHUVA SUAVE, último livro publicado pelo médico José Vasconcelos dos Anjos, o escritor Zeza Vasconcelos. Conheço o trabalho intelectual de Zeza e admiro a sua obra. Gosto muito do seu romance A SUÍTE DOS VIVENTES e, também do seu livro de contos O HERBANÁRIO DE TIA FINHA E OUTRAS CURTAS ESTÓRIAS. A narrativa de Zeza é envolvente, o conteúdo dos seus trabalhos diz muito das fragilidades e do desconforto da condição humana. O texto de Zeza sabe tocar as feridas da vida indizível de cada um de nós. Ler qualquer um dos seus trabalhos é inquietar-se com os próprios pecados, com as pequenas vilanias, com tudo aquilo que a gente pratica e não é capaz de confessar nem mesmo ao próprio travesseiro. Isto sem falar das dores qu