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A CAPELA E A CIDADE


 

 

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

A criação do encapelado de Santo Antônio do Aracaju data de outubro de 1778, quando o padre Luís de Brito Soares recebeu a sua administração. Ali se estabeleceu o povoado de Santo Antônio. O povoado é algo distinto da cidade que Inácio Barbosa fundou em 1855. Somente muitos anos após a fundação da cidade de Inácio Barbosa, o povoado Santo Antônio do Aracaju foi incorporado à malha urbana da nova capital. 

Não obstante a observação com a qual dei início a este texto, é pouco crível a tese sustentada por boa parte da historiografia sergipana, que considera o espaço no qual a cidade de Aracaju foi erguida uma praia inóspita e esquecida. A nova cidade foi construída a partir do bem ocupado sítio Olaria.

Eram duas Olarias: a Olaria do Aracaju e a Olaria de Cima. A primeira, a Olaria do Aracaju ou Porto dos Ferreiros, tinha sua sede na área central da cidade erguida por Inácio Barbosa, nas proximidades da atual rua Estância. A segunda, na povoação do Santo Antônio do Aracaju, pertencia a Cristóvão de Mendonça, descendente dos Furtado de Mendonça, e foi extinta em 1855.

Em toda a região que circundava a Olaria do Aracaju existiam engenhos, sítios, lavouras, criatórios, salinas, casas de telha, casa de palha e escolas. Dentre os principais sítios e núcleos de moradores vale citar Gitimana, Saco, Porto, Pedras, Pau Grande, Bugiu, Melo, Manteiga, Vilanova, Miramar, Boca do Rio, Barreta, Borburema, Aroeiras, Chica Chaves, Tramandaí, Lusia, Guageru e Mané Preto.

Nessas terras se produzia mandioca, cana, arroz, milho, feijão, sal e coco. Existiam olarias, como já visto, além de fábricas de cal e oficinas de ferreiros. Em 1855, mesmo antes da mudança da capital, em Aracaju já funcionava uma agência dos correios. O anotador de todas as evidências que nos mostrou tudo isto foi o historiador Sebrão Sobrinho nas suas Laudas da História de Aracaju (p. 85). O livro foi publicado em 1955 como parte das celebrações do centenário de fundação da cidade.

Como falar em praia deserta? O autor aqui referenciado demonstra que na região da nova capital da província de Sergipe viviam também importantes personalidades da vida política e econômica provincial, como as famílias Furtado de Mendonça, Rollemberg e Chaves (p. 69).

No século XIX, era significativo o número de proprietários ricos que já viviam na região da Olaria do Aracaju, como André Cardoso Negrão, um agricultor preto, nascido em 1784, casado com Maria Francisca, que morreu em julho de 1821. Outra personalidade importante na vida da Província era o pai putativo do comendador Antonio José da Silva Travassos e do padre Francisco José da Silva Travassos. Ele foi casado com Hipólita da Conceição, de quem ficou viúvo, e, ao morrer, em maio de 1832, deixou viúva Antonia Maria da Porciúncula (p. 70).

A partir de 1850, cinco anos antes da mudança da capital de Sergipe de São Cristóvão para Aracaju, começou a vigorar a lei que transformou a terra no Brasil em objeto de comércio. Os sesmeiros começaram a regularizar a situação dos terrenos que estavam sob seu domínio.

Em face do novo dispositivo legal, cresceram os pedidos de aforamento das terras localizadas nas áreas de praia. No caso da regularização das terras da região da Olaria de Aracaju, o ano de 1854 foi de muito grande movimentação. Muita gente bem-posicionada socialmente e politicamente ganhou muito dinheiro com tais procedimentos.

No mês de junho, duas pessoas requereram aforamentos ao presidente Inácio Barbosa: Manuel Fernandes da Silveira e Dionizio José Rodrigues. Um mês depois, em julho, foram oito os requerentes: Guilherme Pereira da Costa, Isabel Rosa de Macedo, Rufina Francisca de Araújo, Antonio Pedro Machado de Araújo, Cláudio José de Mendonça, Clemente Francisco do Vale, Tomás Martins Cordeiro e Luis Francisco das Chagas, o Luizinho, o maior proprietário de terras na região da Olaria do Aracaju.

Em setembro do mesmo ano, o capitão dos portos, José Moreira Guerra, requereu o aforamento de 50 braças de terra na praia de Aracaju, enquanto no mês subsequente, outubro, idêntico benefício de aforamento foi requerido por Luís Francisco de Melo Cavalcante (p. 84).

A região do atual bairro Grageru era o sítio chamado Padre Soares, que havia também pertencido a Luís Francisco das Chagas, o Luizinho, o grande proprietário de terras já citado. Luizinho controlava quase toda a zona sul da nova capital. Ao norte este controle pertencia a João Cabeça Mole. Os dois juntos eram proprietários da maior parte das terras da nova cidade.

O processo de regularização de mais terrenos e a sua divisão em lotes cada vez menores revela como a população da nova capital cresceu rapidamente. Entre os anos de 1857 e 1859, já a partir do segundo ano de instalação da cidade fundada por Inácio Barbosa, Sergipe viveu uma grande crise de abastecimento que resultou em muitas mortes e no registro de saques a armazéns e outras casas comerciais pelo interior do território.

Em Aracaju, o custo de vida ficou bastante elevado. Quem faz uma boa análise do problema é a historiadora Maria da Glória Santana de Almeida, autora do artigo “Estrutura de Produção: a Crise de Alimentos na Província de Sergipe (1855-1860)”. O estudo foi publicado pelo número 27 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, no ano de 1978 (p. 15-39).

Maria da Glória demonstra que a cidade-capital, recém fundada, começou a concentrar funcionários e trabalhadores de construção que não possuíam nenhum tipo de relação com a produção de bens alimentares. Eram consumidores pura e simplesmente. A construção da nova capital de Sergipe causou forte impacto na vida de toda a Província, inclusive no que diz respeito a produção de alimentos. Na nova cidade, os gêneros alimentícios se fizeram raros também pelas dificuldades de comunicação com os centros produtores.

Enquanto nos mercados de Maroim e Laranjeiras se comprava um arrátel de carne por $160 réis, em Aracaju somente se conseguia peso igual por $200, $240 e $280 réis. A terça de farinha de mandioca nas primeiras cidades custava 5$000 a 6$000, ao passo que em Aracaju o preço chegou ao incrível valor de 24$000 a 28$000 réis. Somente por 8$000 ou 10$000 réis se conseguia uma libra de açúcar refinado, enquanto em Maroim e em Laranjeiras, o produto estava por 5$000 ou 6$000 (p. 25).

A partir de 1855, de modo crescente, muitos trabalhadores rurais se afastaram dos seus serviços no campo, dedicando-se a atividade de trabalhador urbano da construção civil, empenhando-se nas obras dos prédios públicos e nas residências dos funcionários que migraram para Aracaju.

A principal atração era o salário que se oferecia a esses operários, à época considerado exorbitante em face do que eles ganhavam como trabalhadores rurais. Somente no ano de 1855, quando as obras foram iniciadas, Aracaju recebeu mais de 200 homens, procedentes de Itabaianinha, Campos do Rio Real, Lagarto, Simão Dias e Itabaiana (p. 33).   

As condições ambientais são também determinantes do comportamento humano no espaço da cidade. A existência de rios, as áreas litorâneas, os espaços de preservação florestal, a implantação de rodovias, as condições de saneamento, distribuição de energia elétrica são elementos considerados nos conflitos que têm o domínio do espaço urbano como foco.

Essa diferenciação urbana forma guetos, com muitas áreas deprimidas pela pobreza. Mas estabelece ainda um outro tipo de gueto. O daqueles espaços destinados a pessoas de renda mais alta. Nesse processo desigual, o Estado sempre buscou regular o uso do espaço, através de um ordenamento legislativo no qual esses conflitos ganharam força de modo especial.

Esse tipo de ação integra-se a todo um contexto que produz necessidades educacionais, sanitárias, de abastecimento, de lazer, de transporte, de administração da justiça, de controle social – elementos indispensáveis à manutenção da ordem vigente. Tudo enfim que se pode entender por urbanização. A aceleração do ritmo da vida social urbana é parte visível desse processo que se confunde com o da vida das pessoas na cidade.

A cidade que Inácio Barbosa fundou, cresceu. E com ela os horizontes e utensilagens mentais dos seus habitantes. As pessoas, os fatos, as instituições os lugares, enfim, a criação humana na cidade, nos mostram que o espaço urbano sempre se transforma no espaço dos olhares.

A nova capital foi ganhando um emaranhado de ruas, praças, igrejas, edifícios, a movimentação das pessoas, um mundo de muitas tarefas. Tarefas assumidas anonimamente por todos e por cada um no contexto dos objetos, das cores, das luzes e das formas da cidade.

Espaço que se antagonizou ao do campo, ao da vida rural, de ritmo lento e modorrento. Visão na qual estão calcadas as construções interpretativas da cidade de Aracaju feitas por memorialistas, poetas, romancistas, sociólogos, urbanistas, economistas, historiadores e também pelas decisões das autoridades judiciárias.

Os viajantes foram os primeiros grandes apaixonados pelas cidades, pela tentativa de compreendê-las. Eles deixaram longas descrições. Trataram dos lugares, dos bairros, das transformações, do traçado urbano, das edificações e da paisagem humana. Mesmo quando as impressões que lhes ficaram não foram muito agradáveis, trataram das más impressões, das hostilidades ambientais, da irregularidade do traçado urbano.

O médico alemão Robert Avé-Allemant foi o primeiro viajante estrangeiro a registrar a sua passagem pela nova capital dos sergipanos. No seu livro Viagem ao Norte do Brasil ele relata a “Excursão à Província de Sergipe. Viajando para Aracaju no Rio Cotinguiba”. Dele, consultei a edição publicada em 1961.

Alleman chegou à cidade no dia 13 de maio de 1859, apenas quatro anos após a transferência da capital para cá. Inicialmente, descreveu as dificuldades de acesso à Barra da Cotinguiba, porta marítima de acesso a Aracaju: “O rio apresenta duas barras; uma ao norte, leva diretamente les-oeste ao porto, mas é absolutamente intransponível, embora à primeira vista pareça a entrada natural. Tem-se que procurar o canal ao sul, por entre a rebentação, depois para noroeste em direção à terra, por onde se chega subitamente a uma lagoa estreita, separada do mar a leste só por um grande banco de areia. Ruma-se, então, ao norte e um pouco a oeste e entra-se no rio largo, em cuja margem direita se ergue a nova capital da Província de Sergipe, principiada há quatro anos, a cidade de Aracaju”.

Na sua opinião, era agradável o aspecto da nova cidade. Tudo bonito e novo, embora provisório. Acostumado à ostentação das edificações europeias, espantou-se com a exiguidade dos espaços nos edifícios públicos da capital, apesar da boa aparência deles: a residência do Presidente, a Câmara Provincial dos Deputados, o quartel, a igreja e a loja maçônica.

Da mesma maneira, manifestou admiração pelo frenesi de novas construções e pelo movimento do porto – o edifício da Alfândega e cerca de 20 navios a vela ancorados, a maior parte de bandeira europeia. Também o rebocador, poderoso auxiliar para a transposição da barra.

Comparou a cidade com Penedo, em Alagoas, de onde estava chegando, impressionando-se mais com Aracaju. Os alicerces do novo Palácio Presidencial em construção impressionaram o nosso visitante pela sua vastidão, chegando ao detalhe de descrever o tipo de pedra calcária utilizada nas fundações – uma laje branca laminada também usada no revestimento das calçadas. Mas, reclamou da falta de uma boa água potável na cidade: “a que se tem para beber é ruim, amarela cor de ouro”. À água atribuiu as febres intermitentes que o acometeram em Aracaju.

Mostrou as distorções sociais presentes no processo de urbanização da nova capital e revelou toda a carga de preconceitos próprios da sua época, ao descrever a periferia da cidade: “Permitiram a gente das classes baixas, fixadas aos poucos em Aracaju, construírem habitações ao seu modo e conforme os modelos que já tinham, sob os altos coqueiros. Vê-se assim, por trás e junto à parte bonita da cidade de Aracaju, uma horrível aglomeração de casas cinzentas, de barro, com telhados de palha de coqueiro, ranchos primitivos, como se justifica no sertão, mas que não deviam nunca ser permitidos numa nova capital provincial recém-fundada”.

Apesar das suas restrições ao padrão de moradia, Avé-Allemant se encantou com a beleza dos moradores, que considerou belas figuras de homens e mulheres: “O Sr. Urpia chamou a minha atenção para uma bela figura de rapariga tapuia, muito conhecida pela sua beleza. De pé na porta da sua cabana, penteava os cabelos; na atitude dum verdadeiro modelo de Ticiano, as espáduas roliças cobertas por uma nívea camisa”.

Revelou que a nova cidade era uma espécie de central de empregos da administração pública dada a ausência de qualquer outra atividade produtiva em Aracaju. Para, finalmente, reclamar da completa ausência de vida cultural: “Não vi sinal de concertos, dum teatro, cassino etc. O povo reunia-se em pequenos grupos diante da casa do Presidente, quando tocava a pequena banda de música do batalhão lá aquartelado”.  

Esta era a Aracaju dos seus primeiros anos. Moça velha, porém ainda pouco conhecida, pouco explorada que vive como se fosse a nos fazer um doce convite: estou aberta aos estudos. Venham me descobrir em cada palmo, venham desvendar os meus segredos.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

 

ALMEIDA, Maria da Glória Santana de. “Estrutura de produção: a crise de alimentos na província de Sergipe (1855-1860). Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, nº 27, 1965-1978. p.15-39.

 

AVÉ-ALLEMANT, Robert. “Excursão à Província de Sergipe. Viajando para Aracaju no Rio Cotinguiba. Maruim”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, nº 26, Vol. XXI, 1961. pp. 92-99.

 

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução Diogo Mainardi. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

 

SEBRÃO SOBRINHO. Laudas da História do Aracaju. Aracaju, Prefeitura de Aracaju, 1955.

 

 

 

*Jornalista, professor aposentado do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

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