Jorge
Carvalho do Nascimento*
A
receita era simples, porém requeria algum esforço físico. Três espigas de milho
seco e três de milho verde. Raladas, tudo era misturado num vaso, colocado sal
a gosto, regado com água para a massa ficar úmida e uniforme. Mexia-se com as
mãos e a massa era posta a descansar um pouco, enquanto se ralava um coco seco.
Hora
de pegar o Cuscuzeiro, panela especial para cozimento a vapor. Na parte inferior,
água. Logo uma placa de alumínio cheia de furinhos. Ajustada a placa, colocada
a massa do cuscuz sobre ela e a tampa da panela, em dez minutos de cozimento estava
pronta a iguaria, indispensável à mesa do café da manhã dos nordestinos.
Enquanto
o cuscuz era cozido, o coco ralado era colocado em um pano limpo. Sobre ele,
muita água. Bem fechado o pano e espremida a massa do coco ralado misturada com
água, obtinha-se o leite de coco.
À
mesa, cada um cortava uma ou duas fatias do cuscuz e colocava no prato. Regava-se
com leite de coco e também, se desejasse, poderia colocar um pouco de leite de
vaca, sem abusar. Era apenas para o cuscuz quente ficar umedecido pelo leite e
incorporar o seu sabor. Os mais gulosos passavam também manteiga. Tudo era
comido com ovo frito ou com carne do sol saída da frigideira.
Assim
se degustava cuscuz na casa da minha avó Petrina, todas as manhãs. Nordestino,
tive meu paladar tocado por sabores tão originais ainda na infância. O cuscuz
acalentou o meu estômago e inscreveu o seu sabor no meu coração.
Nas
casas da minha avó e dos meus pais consumi cuscuz vorazmente, até completar 24
anos de idade, quando casei. Virei chefe de família e mantive o hábito de comer
a maravilha feita de milho.
Mudei
de Aracaju para São Paulo, a fim de fazer um curso de Mestrado na Pontifícia
Universidade Católica - PUC. Na bagagem, um cuscuzeiro. Servia para fazer
cuscuz, cozinhar legumes no vapor, esquentar arroz, esquentar macarrão e outras
massas.
Já
divorciado, mudei novamente. Agora, de Aracaju para Maringá, onde trabalhei
como professor da Universidade Estadual - UEM. Adorava a dieta paranaense, com
a sua deliciosa polenta. Mas, nada substituía o bom e velho cuscuz de milho. Comigo,
o cuscuzeiro.
Bolsista
da Organização dos Estados Americanos – OEA, fui com meu cuscuzeiro dar um giro
pela América Central. Na Cidade do México, dei aulas de Cultura Brasileira, na.
Universidade Nacional – UNAM.
Saí
do México e durante um semestre fui aluno de um Curso de Especialização que a
mesma OEA patrocinou para professores universitários latino-americanos na
Universidade de Havana, sobre Relações Econômicas Internacionais. O cuscuzeiro
testemunhou tudo.
Voltei
a Aracaju e ingressei na carreira docente da Universidade Federal de Sergipe. Mudei
novamente para São Paulo, onde fui fazer Doutorado, a partir do segundo
semestre de 1992. Outra vez estava o cuscuzeiro na Pauliceia.
Em
1993, um outro carimbo no passaporte e embarcamos para a Universidade de
Frankfurt, na Alemanha. Um ano como pesquisador bolsista sanduiche CPES na
Johan Wolfgang Göethe Universität. Os
três quilos de farinha de milho que levei, consumi rapidamente. Temi a
ociosidade da bem aventurada panela.
Descobri
um mercado de produtos típicos em Frankfurt, frequentado por africanos e
latinos. Comprava lá a farinha de milho. O cuscuz continuou garantido,
inclusive no segundo ano, quando obtive mais um semestre de bolsa de pesquisa,
desta vez financiada pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst – DAAD, a agência
governamental que oferece bolsas de estudos e pesquisas a alemães e
estrangeiros.
Voltei
a Aracaju, continuei na carreira da UFS e casei novamente. O cuscuzeiro
continua comigo. Mantenho o hábito de comer cuscuz. Informei à minha família que
a cremação será o destino do meu corpo após a morte que espero muito distante.
Finalmente abandonarei o cuscuzeiro.
*Jornalista,
Doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e Presidente da
Academia Sergipana de Educação.
Jorge, entendo essa sua relação de paixão pelo cuscuz...realmente, é uma delícia. Mas, também acho que é um desejo de perpetuar momentos felizes da sua infância, no tempos da casa da sua avó Petrina. Até me emocionei quando você falou: Assim se degustava cuscuz na casa da minha avó Petrina, todas as manhãs. Seu texto me levou até lá e eu pude ver a mesa posta, a fumacinha saindo do café, do cuscuz... cena maravilhosa, não dá para esquecer e você faz muito bem em registrar. Agradeço por dividir com a gente!
ResponderExcluirGrande abraço,
sonia pedrosa.
Relatos de memória que de forma leve resgatam culturas de época e de lugar. D. Petrina protagoniza essa cultura ainda que atue nos bastidores, sem reivindicar holofotes. Homenagem à família sergipana. Cultura nordestina. Brasileira sobretudo. Aspectos de memória individual que aludem a um ideário coletivo. Retratos de um tempo. Merecem coletânea em livro!
ResponderExcluirBravo! Como bom nordestino, não nega suas raízes. Água na boca de muitos deixou com a iguaria de Dona Petrina.
ResponderExcluir... mas, e o cusczueiro, quando de sua morte, quem cuidará dele? Deixá-lo em legado ou em herança penso ser uma ingratidão para com o viajante. Não seria o caso, dado o companheirismo, que ambos se fundissem no calor abrasador derradeiro? Fica a sugestão.
ResponderExcluirO COTIDIANO EM CRÔNICA.
ResponderExcluirPARABÉNS!
A CRÔNICA COMO ESTILO LITERÁRIO E NESSE CASO METODOLOGIA DE APRESENTAÇÃO DE UMA CARREIRA ACADÊMICA PROFÍCUA.
OUTRA VEZ PARABÉNS!