Jorge
Carvalho do Nascimento*
Vivi
na cidade de São Paulo a minha primeira festa junina sem fogueira. Havia
acabado de chegar a pauliceia para fazer um curso de Especialização pela
Unicamp e logo depois um Mestrado pela PUC. Até então vivera em três cidades.
Os quatro primeiros anos depois de nascido, em Salvador; um ano no Rio de
Janeiro e 21 anos em Aracaju. Aos 26 anos de idade, chegando em São Paulo para
estudar, a arrogância juvenil me convencera ser possuidor de uma inteligência
privilegiada.
O
dia-a-dia na maior cidade do país ia me expondo ao estranhamento cultural. A
enorme carga de preconceitos dos paulistanos contra os nordestinos se encarregava
de ancorar ao rés do chão o meu ego excessivamente inflado. Os choques
culturais me assustavam tanto quando eu era perguntado se em Aracaju havia
ensino superior quanto ficava perplexo com o meu olhar de deslumbramento
extasiado e indignado nas feiras livres que eu passei a frequentar no bairro de
Pinheiros, onde morava. Isto para não comentar as diferenças fonéticas no uso
da letra E, por exemplo – Ê para os paulistanos, É para os nordestinos.
Acostumado
a comer goiabas, jaboticabas, carambolas, graviolas, jenipapos, pinhas, mangas
e outras frutas cultivadas no quintal da minha casa e nos dos meus vizinhos,
sem que precisasse pagar por eles, ficava horrorizado ao descobrir que era
necessário comprar nas feiras livres de goiaba a jaca. Sem falar no estranhamento
dos sabores.
Ao
longo de toda a minha vida fui encantado pelo sabor dos pêssegos. Na minha casa,
quando compareciam, eles chegavam em calda, enlatados por indústrias gaúchas.
Comprei pêssegos frescos na primeira vez que fui à feira em São Paulo. Descobri
que o meu agrado era com o sabor açucarado do conservante. Somente naquele dia
conheci o sabor da fruta que me pareceu horrível ao primeiro contato.
13
de junho chegou. Festa de Santo Antônio. Fomos convidados, eu e minhas filhas (meninas
pequenininhas), a ir a uma festa, na casa de uma família de amigos, celebrar o
santo casamenteiro. Fomos a uma casa boa, amplos espaços aconchegantes, varanda
agradabilíssima e nos fundos um belo jardim de quintal. Procurei a fogueira e
não a vi. Onde estão o sanfoneiro, o zabumbeiro e o homem do triângulo? A
questão sequer foi considerada e não houve resposta a minha pergunta. Milho não
havia – cozido nem assado. A bebida era quentão – um vinho aquecido com cravo e
canela. A comida, sardinhas assadas e pinhão cozido.
Gostei
muito do convívio que os amigos nos proporcionaram. Inverno chegando em São
Paulo, noites cada vez mais frias. O quentão, as sardinhas e o calor humano nos
fizeram bem, mas aos meus padrões culturais não houve nenhuma festa de Santo
Antônio, tal como eu me acostumara nas festas juninas da região Nordeste.
Voltei
a viver festas de Santo Antônio (ou a ausência delas) carregadas de tristeza quando
fui professor na Universidade Estadual de Maringá, no Paraná. Os mesmos padrões
culturais praticados pelos paulistanos. Quando morei em Cuba e na República
Federal da Alemanha percebi muito claramente a falta de prestígio do santo
casamenteiro. Desejei o quentão e a sardinha dos paulistanos e paranaenses. Sequer
tal possibilidade havia.
Nos
anos em que fiquei sem a festa do dia 13 de junho sempre recordava da alegria
reinante na casa do meu pai. Claro, seu nome era Antônio. Aquele era o dia de
reunir a família em volta da fogueira. Comer canjica (curau, para os paulistanos
e paranaenses), mungunzá (canjica, no Sudeste e no Sul do Brasil), pamonha,
pé-de-moleque (moqueca de carimã, na Bahia. Um delicioso bolo à base de
mandioca e coco enrolado em uma folha de bananeira), manauê (um bolo de milho
amanteigado), milho cozido e milho assado.
Fogueira
acesa a noite inteira na porta de casa. Final da noite, hora de pular a
fogueira e fazer novos compadres e novas comadres. “Santo Antônio dormiu, São João
acordou. Você vai ser minha comadre que Santo Antônio mandou”. Normalmente, os
pedidos escondiam segundas e até terceiras intenções dos pretensos compadres em
relação a suas comadres e invariavelmente das comadres em relação aos rapazes, também.
Quem sabe, um namoro. As mocinhas casadoiras e algumas outras assim já não tão
jovens, como mandava a tradição, faziam promessas que repousavam sobre as
cinzas da fogueira daquela noite.
A
festa de Santo Antônio era uma celebração da família, dos vizinhos, dos amigos.
Em 2011, diante da fogueira, última festa de Santo Antônio que passou entre
nós, meu pai, vaticionou: “você é o meu filho mais velho e terá doravante uma
incumbência – no dia 13 de junho de cada ano acenda uma fogueira em homenagem
ao santo da minha devoção e pela minha memória”. Desde 2012 tenho honrado tal
compromisso.
Este ano vou falhar com o meu pai. Peço
desculpas à sua memória. É involuntário. Não haverá fogueira. Os impedimentos
da Covid 19 estão postos para todos. Até para os mortos. Sem falar que o Santo Antônio
deve estar confuso. Os governos de vários Estados do Nordeste brasileiro
anteciparam para a primeira quinzena de maio a celebração do São João (o que
normalmente ocorre no dia 24 de junho). Santo Antônio deve ter ficado triste
porque nove dias antes, no final de abril, ninguém acendeu nenhuma fogueira.
Será que as moças casamenteiras ainda podem apresentar seus pedidos?
*Jornalista Profissional, Professor, Doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e Presidente da Academia Sergipana de Educação.
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